Viagens do Encouraçado São Paulo conduzindo os reis belgas em visita oficial ao Brasil, em 1920

 Carlos André Lopes da Silva*

Antes da difusão do avião, o principal meio de contato entre povos separados por grandes distâncias, os navios dominavam o transporte de passageiros, como ainda hoje prevalecem no transporte de carga. Neste contexto, era comum que chefes de estado e outros dignitários fossem conduzidos em viagens transoceânicas por navios de guerra como uma forma de demonstrar o poderio daquela nação mesmo para países com os quais mantinham boas relações.

 

Acessando o link para as fotografias do encouraçado São Paulo e de outros aspectos da visita dos reis belgas ao Brasil, em 1920, do acervo da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

Após a Primeira Guerra Mundial e durante um período marcado pela agitação política e crise econômica também no Brasil, o recém-eleito presidente Epitácio Pessoa pretendia elevar a precária posição do país no contexto internacional, percepção consolidada quando chefiou a delegação nacional na Conferência de Paz, em Versalhes. Foi lá que manteve contato com o soberano belga, Alberto I, apelidado de “rei soldado” por liderar, em campo de batalha, o exército de seu país contra a invasão alemã. O convite para uma visita oficial foi feito e logo aceito pelo monarca europeu, não sem despertar críticas dos que por aqui viam incoerência em uma ainda nova República se utilizar de um monarca para ampliar sua visibilidade internacional.

 

 

Para fornecer um transporte adequado à posição do rei belga e sua consorte, Rainha Elisabeth, o governo primeiro pretendeu utilizar um navio de transporte de passageiros de uma das companhias de navegação nacionais, claro, escoltado por um navio de guerra da Marinha do Brasil. Porém, a excelente impressão que teve o presidente da República quando inspecionou as acomodações do navio de escolta, o Encouraçado São Paulo, fez com que a missão de transporte do casal real recaísse naquele navio que acabara de retornar de uma modernização em estaleiro estadunidense. O São Paulo era um dos dois encouraçados adquiridos junto à Inglaterra no final da primeira década daquele século junto com toda uma nova Esquadra. A Marinha do Brasil tornou-se uma das primeiras operadoras mundiais daquele tipo de navio, os encouraçados denominados tipo Dreadnought, elevando o Brasil a uma potência naval no contexto sul-americano. Embora o São Paulo, como seu “irmão”, o Minas Gerais, já estivesse algo desatualizado perante o rápido progresso dos navios de guerra durante o conflito de 1914 a 1918 – ainda abastecia-se com carvão quando o uso do óleo combustível já se encontrava disseminado –, a belonave de 150 metros de comprimento, mais de 20 mil toneladas de deslocamento e tripulada por mil homens ainda era um poderoso símbolo para uma nação que pretendia participação mais ativa no concerto internacional. Àquela missão somariam-se outras duas, quando da viagem de retorno dos monarcas à Europa, o navio faria visitas protocolares aos aliados europeus no conflito recém-encerrado – sim, aliados conquistados com a declaração de guerra do Brasil à Tríplice Aliança em 1917, que redundou no envio de uma flotilha da Marinha do Brasil para atuar em operações antissubmarino no último ano da Guerra – e, na última parada europeia, em Lisboa, novamente serviria a monarcas, repatriando os restos mortais do último Imperador brasileiro e sua esposa, Pedro II e Teresa Cristina.

As adaptações nas acomodações para transportar o casal real e sua comitiva numa viagem transatlântica foram realizadas pelo Estaleiro de Henrique Lage e, em 27 de julho de 1920, o São Paulo partiu com destino a Zeebrugge, porto comercial no Mar do Norte, de intenso simbolismo naquela Europa recém-pacificada, por ter sido local de intensas lutas na última fase do conflito. A utilização desse porto para o embarque dos reis belgas foi desaconselhada por aquele governo e por autoridades navais britânicas, ambas envolvidas nos trabalhos de desobstrução do canal navegável, bloqueado por vários cascos propositalmente afundados pela Marinha britânica para inviabilizar o uso da base naval ali montada pelos alemães. Mesmo assim, a tripulação do São Paulo, em manobra precisa e arriscada, conseguiu realizar a atracação em 28 de agosto. Quatro dias depois, o casal real embarcou e foi recebido por uma salva de 21 tiros. No regresso ao Brasil, deram-se os festejos do 7 de setembro e a tradicional cerimônia naval da passagem do Equador, porém houve um momento de intensa tristeza. Durante a travessia, faleceu, vítima de um acidente, o grumete Francisco Soares Lima; a cerimônia fúnebre foi realizada no mar pelo capelão que acompanhava o casal real. Testemunhas afirmaram que os marinheiros ficaram tocados com a consternação da Rainha Elisabeth, que se ajoelhou ao lado do caixão para orar pelo grumete. Em 19 de setembro, o encouraçado já se aproximava do Rio de Janeiro e recebeu a escolta de outros navios da Marinha do Brasil, hidroaviões da Aviação Naval brasileira sobrevoavam a formação e inúmeros mercantes saíram porto afora para receber os ilustres visitantes. Coube à Galeota D. João VI, que serviu durante décadas aos Orleans e Bragança da Casa Imperial brasileira, conduzir a comitiva no último e menor trecho da viagem, do navio de guerra fundeado até a Praça Mauá, seguindo dali o séquito pela Avenida Rio Branco para receber a aclamação popular.

 

 

Menos de um mês depois, em 16 de outubro, o casal real voltava a embarcar no São Paulo para seu retorno à Europa. Em 1º de novembro, o Rei Alberto I desembarcou em Lisboa, e a Rainha Elisabeth permaneceu a bordo até a conclusão daquela missão, quando foi deixada junto com sua comitiva no porto belga de Dunquerque. O navio ainda aportou em Portsmouth, Antuérpia e Cherburgo, cumprindo o roteiro de visitas protocolares aos aliados da Primeira Guerra Mundial. A derradeira missão se iniciou em 19 de outubro, quando o São Paulo chegou a Lisboa para receber os restos mortais dos últimos imperador e imperatriz do Brasil. O cortejo fúnebre que saiu do Panteão dos Bragança  reuniu grande multidão nas ruas da capital portuguesa; acompanharam os corpos até o navio brasileiro o Conde D’Eu e o Príncipe D. Pedro. No mesmo dia o São Paulo deixou Portugal e, em 7 de janeiro de 1921, atracava na Praça Mauá encerrando com sucesso as três missões consecutivas iniciadas quase seis meses antes, quando percorreu sem falhas mais de 40 mil quilômetros.

 

*  Carlos André Lopes da Silva é pesquisador da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha

 

Em 26 de setembro de 2016, foi publicado um segundo artigo sobre o assunto, de autoria da pesquisadora Andrea C. T. Wanderley: A viagem dos reis da Bélgica ao Brasil sob as lentes de Guilherme Santos

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