Fotografia e namoro

Fotografia e namoro

Imagens de casais enamorados como nos habituamos a ver ao longo do século XX até nossos dias não são frequentes na história da fotografia do século XIX e do início do novecentos. A Brasiliana Fotográfica convidou Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles, para escrever sobre uma imagem de um casal de camponeses produzida pelo fotógrafo gaúcho Luiz do Nascimento Ramos, conhecido como Lunara (1864 – 1937). O registro faz parte do álbum Vistas de Porto Alegre – Photographias artísticas – Editores Krahe & Cia. Porto Alegre, que traz outras 18 fotografias de Lunara de circa 1910. O portal também selecionou mais uma fotografia de um casal de camponeses e outras dos casais reais formados por dom Pedro II (1825 – 1891) e dona Teresa Cristina (1822 – 1889) e pela princesa Isabel (1846 – 1921) e Gastão de Orleáns, o conde d´Eu (1842 – 1922). Todas revelam, em maior ou menor grau, afeto, cumplicidade e companheirismo. Foram produzidas por Alberto Henschel (1827 – 1882), Byrne & Co, Vincenzo Pastore (1865 – 1918) e por fotógrafos ainda não identificados. E assim a Brasiliana Fotográfica celebra o Dia dos Namorados.

 

Nhô João, deixa disso!

Elvia Bezerra*

 

É sabido que Lunara, nome artístico de Luiz do Nascimento Ramos, montava e dirigia cenas para fotos que fez na periferia da capital gaúcha, nas primeiras décadas do século XX. Não se pode, no entanto, saber o que esse método de trabalho foi capaz de desencadear nos coadjuvantes da composição. Como terá o casal, aqui retratado, voltado à intimidade da sua tosca torre de Pisa? Terá a senhora repetido o “nhô João, deixa disso!”, como informa a legenda, quando ficaram a sós? Seu recato terá se mantido dentro de quatro paredes? Terão os dois sido os mesmos? Haverá o clique do fotógrafo amador, nascido em Porto Alegre, em 1864, lhes restituído o gosto antigo do namoro?

Afinal, não é preciso ser nenhum André Gorz, filósofo austro-francês que só se deu conta da dimensão de seu amor pela mulher, com quem era casado havia décadas, depois que ela passou a sofrer de doenças incuráveis: “Já faz 58 anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca”, escreveu ele em Carta a D., documento de amor em que tornou pública a importância de Dorine na sua vida, confessando, aos 82 anos, que a amava e a desejava como na juventude.

Mas não é preciso tal situação dramática para acelerar um coração que bate devagar. Um clique precedido de uma arrumação de cena romantizada pode contagiar os personagens e fazê-los namorados de novo, ainda que seja por um dia.

Certamente não foi apenas a arquitetura dessa casa pobre que chamou a atenção de Lunara na cena registrada em um dos fins de semana em que saía para fotografar– consta que exercia o ofício especialmente aos domingos. A imagem de declínio, realçado pelo teto de telha vã da construção de taipa, se prolonga na do casal maduro, sentado entre a lateral e a frente da casa. A porta, inclinada para a esquerda, segue o movimento do telhado, deixando-se ver ladeada também pela irregularidade das varas de bambu, recheadas de barro. A decadência aqui é questionável.

A assimetria dos elementos da imagem resulta em harmonia: o telhado, decaído para a esquerda, compõe o fundo em que sobressai o casal de meia-idade, naquela fase da vida em que, como no poema de Manuel Bandeira, “o fogo já era frio”. Contrariamente à ideia de fragilidade que pode passar a milenar técnica construtiva da casa de taipa, ou pau a pique, como também é conhecida, o método está entre os mais resistentes. Na foto de Lunara, a solidez da construção é comprometida por um provável erro no momento da fixação da madeira no solo, talvez a causa do tombamento para o lado esquerdo. Ainda assim, não há dúvida com relação à firmeza que a imagem inspira.

Faz todo o sentido saber que Lunara fotografava nos fins de semana. Só assim poderia fixar um momento de ternura domingueira, ao ar livre, de um casal cuja labuta diária o impediria de vivenciá-la em outro dia que não fosse este, consagrado ao descanso e à oração.

Se atendem ao pedido de posar, é o homem quem incorpora o papel do cavalheiro, em atitude de devoção à dama. A figura dele é enternecida, mas sólida: pés paralelos fincados na terra, posta-se de frente para a companheira, que, sem encará-lo, coloca-se de lado e olha na direção oposta. Digno, ele segura as mãos da mulher; ela não as entrega. Recua, numa espécie de rejeição não totalmente desprovida de dengo, quem sabe provocada pelo desconforto da manifestação de carinho a céu aberto.

A fachada da casa é dignificada pelo chapéu que encima a porta, indicando que, ao deixá-lo à entrada, é com reverência que nhô João entra na sua moradia. A simplicidade do detalhe está longe da ironia presente no conto “Capítulo dos chapéus”, de Machado de Assis, em que o bacharel Conrado Seabra é instado pela mulher, Mariana, a trocar o chapéu por um mais moderno. Machado, impiedoso, começa por dizer que “o princípio metafísico é este: ‒ o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab æterno; ninguém o pode trocar sem mutilação”. Ao longo da narrativa, entretanto, sem poupar a mulher de humilhação, conclui com esta ironia arrasadora: “Mas você reflita consigo, e verá… Quem sabe? Pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu…”

A atmosfera pacífica da foto de Lunara opõe-se à tensão do conto de Machado. Na cena franciscanamente endomingada do gaúcho, reina a serenidade; quase se ouve “o silêncio que tem voz”. E o chapéu de palha, no alto, longe de ser objeto de discórdia ou de prestígio social, como acontece no conto, reafirma seu inquestionável caráter de dignidade na frente da casa. De resto, fica aqui a deixa para que, ainda recorrendo ao sombrero, nhô João encante sua mulher com os versos de Federico García Lorca, que, em “Por tu amor me duele el aire”, eleva o adereço ao patamar do ar e do coração, todos passíveis de serem sacrificados por amor:

“¡Ay, qué trabajo
me cuesta quererte como te quiero!

Por tu amor me duele el aire,
el corazón

y el sombrero”.

 

*Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles

 

Mais fotografias e a história do Dia dos Namorados no Brasil

 

A data dedicada aos namorados foi criada, no Brasil, pelo publicitário João Doria (1919 – 2000), e é comemorada no dia 12 de junho, véspera do Dia de Santo Antônio, que por tradição é considerado o santo casamenteiro. Dória trouxe a ideia do exterior e a apresentou aos comerciantes paulistas, iniciando, em junho de 1949, uma campanha com o slogan “não é só com beijos que se prova o amor” (Diário da Noite27 de maio de 1949, última coluna9 de junho de 1949; e Revista da Semana, 18 de junho de 1949; Il Moscone, 25 de junho de 1949).

 

 

Acessando o link para as fotografias de casais disponíveis no acervo da Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

 

 

Andrea C. T. Wanderley

Editora-assistente e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

Outras publicações da Brasiliana Fotográfica no Dia dos Namorados:

Série “O Rio de Janeiro desaparecido” X – No Dia dos Namorados, um pouco da história do Pavilhão Mourisco em Botafogo, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora da Brasiliana Fotográfica, publicado em 12 de junho de 2020.

No Dia dos Namorados, o álbum “Vistas de Petrópolis” e o fotógrafo alemão Pedro Hees (1841-1880),  de autoria de Andrea C. T. Wanderley, editora e pesquisadora da Brasiliana Fotográfica, publicado em 12 de junho de 2023.