Praias do Rio na memória, na história e na fotografia

E é sobre as praias cariocas, das quais, devido ao atual contexto da pandemia de coronavírus temos que nos manter afastados, o artigo “Praias do Rio na memória, na história e na fotografia”, escrito pela historiadora Ana Maria Mauad. Segundo a autora, nas últimas décadas do século XX, a renovação historiográfica deslocou a praia do foco da história urbana para os espaços das práticas e representações de uma história cultural”. Sobre o portal, comentou: “Temos de saudar e incentivar iniciativas como a da Brasiliana Fotográfica, pois ao disponibilizar de forma organizada e de fácil acesso arquivos fotográficos de grande valor, contribui para incrementar as pesquisas com e sobre a prática fotográfica como experiência histórica incontornável ao sujeito moderno”.

 

Praias do Rio na memória, na história e na fotografia

Ana Maria Mauad*

 

As idas à praia de Ipanema povoam as minhas lembranças de infância. Até hoje sinto na pele o calor de deitar na areia quente, depois de um mergulho no mar geladinho do verão carioca; os grãos finíssimos escorrendo pelos dedos depois de amassar um torrão de areia, daqueles que ficavam na faixa mais seca no caminho do mar, ou ainda, do ‘jacaré” com prancha de isopor encapada de tecido para não irritar a barriga. Poderia desfiar aqui o fio da memória em cenas que teriam a praia como o cenário de prazer e alegria. Não sem motivo, em 2015, a coletânea Fotograficamente Rio: a cidade e seus temas, que organizei como resultado do edital FAPERJ Rio 450 anos, apresentava o mar como um dos seus fios condutores e as praias da cidade como tema de vários artigos (http://www.labhoi.uff.br/fotograficamente-rio).

A renovação historiográfica, dos anos 1980 e 1990, deslocou a praia do foco da história urbana e da geografia histórica para os espaços de sociabilidade, das práticas e representações de uma história cultural que se consolidava em sintonia com os debates sobre novas fontes, novos objetos e novas abordagens. Esse ambiente abrigou um movimento quase arqueológico de escavação em arquivos, em busca de documentos que iluminassem experiências cotidianas e vivências sociais, por meio de diferentes formas de as representar. Nesse movimento, as imagens invadem os domínios da história, alçando a visualidade como princípio para estudar as sociedades passadas.

 

Acessando o link para as fotografias das praias brasileiras disponíveis na Brasiliana Fotográfica e que foram selecionadas e enviadas a Ana Maria Mauad, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas. 

 

Do mundo das imagens, as fotografias ganharam a minha atenção desde os anos 1980, na minha pesquisa de doutorado. Fotografias do álbum de família ganhavam ressonância nas páginas das revistas ilustradas descortinando um mundo de consumo, aparências e desigualdades. As praias ocupavam um lugar central nas narrativas visuais, tanto privadas quanto públicas. Em uma charge de 1904, publicada no Jornal do Brasil, edição de 11 de setembro, logo na primeira página, observa-se uma cena de praia, em que todos os banhistas portam câmeras fotográficas. Identificamos entre os usuários,  a Kodak Pocket, câmera lançada pela Eastman Kodak, em 1895, ou a mais recente Brownie, comercializada pela mesma fábrica a partir de 1900, ambas espalharam a febre da democratização da imagem no início do século XX. Essa ilustração apresenta uma dupla qualidade: primeiro por apontar a presença da prática fotográfica no cotidiano dos ‘batedores de chapa’ com expansão do mercado de cameras e produtos fotográficos; mas também por evidenciar a praia como espaço de sociabilidade de um grupo variado de personagens.

 

 

No Rio de Janeiro, os banhos de mar já foram recomendados como tratamento de saúde para governantes, logo no início do século XIX, e continuariam a ser prescritos por médicos sanitaristas até o início do século XX. As praias eram consideradas lugares de ares frescos que pouco a pouco se tornariam espaço para vilegiatura dos mais abastados, sobretudo, nas praias oceânicas. Uma nova geografia cultural se desenhava pela frequência social e urbana das praias. Ir à Praia das Virtudes para o morador da Lapa, não era o mesmo que um morador de Botafogo frequentar o Balneário da Urca. Para os primeiros, o importante era a farra; para os outros, o que valia era ver o ser visto. Na crônica Da praia do Flamengo ao Balneário da Urca, assinada por Leão Padilha, essa distinção fica clara:

“PRAIA DO FLAMENGO: Domingo de manhã, os banhistas do Flamengo chegam mais tarde do que os da Lapa e saem mais cedo do que os de Copacabana. Às 10 horas, aquele pedacinho de areia fica que nem formigueiro, cheio, muito cheio (…) uma pequena faz maravilhas acrobáticas nos braços de um sportsman! Bóiam pares abraçados dentro de pneumáticos de automóveis … Na calçada vendem água doce para tirar o sal, o guarda-civil passeia para lá e para cá medindo a moralidade das roupas. PRAIA DE BOTAFOGO: Pouca gente. Criadas e funcionários das quitandas de bairro aficionados do sport. O pessoal chic vai mostrar suas toilletes no Balneário da Urca, e deixa a Enseada tranqüila para a criadagem que não teve tempo para tirar o pó do Flô do Abacate. BALNEÁRIO DA URCA: Supra sumo do chic. Fora ficam os carros esquentando ao sol. Lá dentro aqueles 50 palmos de areia regurgitam… Em cima, dança, flirt e cocktail (…) uma ‘jazz-band’ comunica tremura coreográficas aos corpos quentes (…) Lá embaixo há cubículos para trocar de roupa e outros misteres mais íntimos (…) a empresa não fiscaliza nem tampouco a polícia. Na areia senhoras respeitáveis, a julgar pela pintura e pelo volume, conversam coisas graves e fumando cigarros turcos. Rapazes ensinam ginástica a seco e dentro d’água. Mais tarde, o balneário perde esse aspecto familiar da manhã, o jazz-band ataca músicas mais frenéticas, os cocktails ganham ingredientes mais fortes e o ‘flirt’ é mais íntimo. Dentro da água ensina-se a nadar com menos inocência (…) fala-se alto (…) onde os rr franceses arrastam na gíria da moda, as exclamações das revistas alegres do Carlos Gomes e do Recreio (…) Não se ouve falar em cocaína, morfina ou ópio (…) PRAIA DAS VIRTUDES: No lencinho de areia perdido no mar (…) a promiscuidade é estonteante. A salada tem gosto de tudo – laranja de turco, cebola de português, macarrão de italiano, banana de brasileiro. Freqüentam essa praia moradores da Lapa, Sta. Luzia e todas as pensões do Centro. E por fim. A praia do Caju: todos vão à praia e tomam o seu banho de areia, de sol e de água suja…” (Rio Ilustrado, Ano I, out-dez, 1928)

 

Acessando o link para todas as fotografias das praias brasileiras disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.  

 

As crônicas escritas ao sabor de quem andava pela cidade e a observava, guardavam a marca da visualidade de época, em estreito diálogo com as caricaturas, as ilustrações e, sobretudo, com as fotografias. Imagens que redefinem a experiência histórica com o mundo visível instituindo novas formas de olhar.

É interessante acompanhar as mudanças no enquadramento da paisagem praiana que a Brasliana Fotográfica nos apresenta. É possível, pelas lentes de José Baptista Barreira Vianna, visualizar uma Copacabana que, de um grande areal vai aos poucos sendo povoada, com as primeiras linhas de bonde ainda a tração animal.

 

 

Em uma delas, parece que nos debruçamos no muro da residência dos Barreira Vianna, para olhar como se vivia então. Dos fundos da casa, se vislumbra a varanda de frente para o mar de Ipanema.

 

 

Já as vistas aéreas de Jorge Kfuri nos lança em uma nova experiência visual: o Zepelim  que nos visitou causando sensação, sobrevoando as praias da zona sul; o forte de Copacabana na ponta que une Arpoador ao Posto Seis e a belíssima vista da Praia de Copacabana com sua primeira geração de casas, arruamento definido, pista de rolamento de mão dupla com carros de último tipo circulando, calçada com as tradicionais pedras portuguesas em ondas, dá até para ver uma parte do calçadão destruída por uma das famosas ressacas. Esse tipo de escrutínio, vale lembrar, só se tornou possível ao público que hoje tem o privilégio, de forma remota, conhecer essas verdadeiras preciosidades que o acesso irrestrito às imagens nos oferece.

 

 

Temos de saudar e incentivar iniciativas como a da Brasiliana Fotográfica, pois ao disponibilizar de forma organizada e de fácil acesso arquivos fotográficos de grande valor, contribui para incrementar as pesquisas com e sobre a prática fotográfica como experiência histórica incontornável ao sujeito moderno.

 

 

*Ana Maria Mauad é Doutora em História e professora titular do Departamento de História, pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF

 

Acesse outros artigos sobre praias do Rio de Janeiro e do Brasil publicados na Brasiliana Fotográfica:

 

Início do verão – as praias do Brasil, publicado em 22 de dezembro de 2015

Ipanema, que completa 122 anos, pelas lentes de José Baptista Barreira Vianna (1860 – 1925, publicado em 26 de abril de 2016

A fundação de Copacabana, publicado em 6 de julho de 2016