O Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial

Com a publicação de fotografias de crianças de diferentes etnias, a Brasiliana Fotográfica celebra o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. As imagens escolhidas são de autoria do berlinense Alberto Henschel (1827 – 1892) e do português Felipe Augusto Fidanza (1844 – 1903). Pertencem ao Arquivo Nacional e ao Leibniz-Institut für Länderkunde, ambas instituições parceiras do portal.

“O racismo continua a envenenar instituições, estruturas sociais e o cotidiano de toda a sociedade”. 

António Guterres (1949-), secretário-geral da ONU, em 21 de março de 2022

 

Henschel foi um dos mais importantes fotógrafos que atuaram no Brasil na segunda metade do século XIX. Chegou no Recife, em 1866, e, ao longo de 16 anos, teve uma intensa atividade no país. Segundo o historiador Boris Kossoy (1941 – ), Henschel pode ser considerado pioneiro no Brasil como empresário da fotografia, pois chegou a ter quatro estabelecimentos: o primeiro no Recife (1866), o segundo em Salvador (provavelmente em 1868) e os últimos no Rio de Janeiro (1870) e em São Paulo (1882).

 

 

 

Fidanza foi também fotógrafo de destaque, tendo trabalhado no norte do Brasil no século XIX e no início do século XX. Chegou ao  país em fins da década de 1860 e, em seu estúdio, retratou tipos diversos no formato carte de visite. Para tornar essas fotografias, que vendia, exóticas, utilizava adereços e construía cenários. Além de produzir estes retratos, registrou as paisagens e documentou o início do desenvolvimento urbano de Belém e de Manaus, ocasionado pela riqueza do ciclo da borracha.

 

 

Breve história do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial 

 

“Discriminação Racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a finalidade ou o efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e exercício, em bases de igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da vida pública”

 Artigo I da Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,

20 de novembro de 1963

 

O Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial foi criado pela Organização das Nações Unidas, ONU, em 26 de outubro de 1966 (Portal da UNESCO). É uma referência ao Massacre de Sharperville, ocorrido em 21 de março de 1960, em Joanesburgo, na África do Sul. Neste dia, milhares de pessoas faziam um protesto pacífico contra a Lei do Passe, que obrigava a população negra a portar um cartão que continha seus dados pessoais e os locais onde era permitida sua circulação. A polícia do regime do apartheid atacou os manifestantes, matando 69 e deixando cerca de 180 feridos (Correio da Manhã, 22 de março de 1960Jornal do  Brasil, 23 de março de 1960).

 

 

Segundo pesquisa divulgada pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -, no dia 22 de julho de 2022, cujos dados integram a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Características Gerais dos Moradores 2021, o perfil da população brasileira  de acordo com cor ou raça é a seguinte: 99,90 milhões de pardos, 91,47 milhões de brancos, 19,30 milhões de negros e 1,98 de indígenas, amarelos ou sem declaração (Folha de São Paulo, 22 de julho de 2022). No Brasil, o crime de racismo está previsto na Constituição Federal, é inafiançável e imprescritível. A Lei n° 7.716/1989 tipifica a discriminação racial como crime.

O Brasil é um dos países signatários do acordo que a ONU que estabeleceu os anos entre 1º de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2024 como a Década Internacional das Pessoas Afrodescentes com o objetivo de reduzir as desigualdades e exclusões as quais eles estão submetidos (Portal da ONU; Americas Quarterly).

 

International Decade For People of African Descent Logo in Portuguese

 

“Africanos e pessoas afrodescendentes, asiáticos e pessoas de descendência asiática, comunidades minoritárias, pessoas indígenas, migrantes, refugiados e tantos outros – todos continuam a enfrentar estigmatização, culpabilização, discriminação e violência”.

Acesse aqui o discurso de António Guterres, secretário-geral da ONU, proferido no Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.em 21 de março de 2022.

Em 2023,  o tema da ONU do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial é o foco na urgência no combate ao racismo e à discriinação racial 75 anos após a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Portal da ONU).

 

Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé

 

Em 6 de janeiro de 2023, foi sancionada a Lei 14.519/2023, que instituiu o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, que será celebrado anualmente também no dia 21 de março.

Lembramos aqui a reportagem As noivas dos deuses sanguinários sobre o candomblé, que tornou-se histórica. Foi realizada pelo repórter Arlindo Silva (1924 – 2011) e pelo fotógrafo José Medeiros (1921 – 1990) e publicada na revista O Cruzeiro, de 15 de setembro de 1951. Tratava-se de uma documentação fotográfica inédita e foi uma resposta à publicação na revista Paris-Match, de 15 de maio de 1951, da matéria Les possédées de Bahia, com fotografias produzidas pelo cineasta francês Henri Georges-Clouzot (1907 – 1977) e escrita na terceira pessoa. A reportagem foi considerada etnocêntrica e arrogante.

Com a ajuda de um motorista de táxi de Salvador, o fotógrafo Medeiros localizou um terreiro e pagou pelos animais que seriam sacrificados no ritual. Na hora da realização da reportagem, o cabo do sincronismo do flash se rompeu e ele teve de ajustar o anel do obturador de sua Rolleiflex para enfrentar a escuridão do terreiro. A reprodução total ou parcial da matéria publicada no Cruzeiro era absolutamente interdita. O tom sensacionalista da reportagem foi criticado. Seis anos depois, Medeiros relançou as fotografias no livro Candomblé, primeiro sobre essa religião no Brasil e o material passou a ser considerado importante do ponto de vista etnográfico. O Instituto Moreira Salles, que em agosto de 2005 adquiriu sua obra completa com aproximadamente 20 mil negativos, relançou o livro em 2011.

 

Andrea C. T. Wanderley

Pesquisadora e editora da Brasiliana Fotográfica

 

Fontes:

Folha de São Paulo

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Portal da BBC

Portal da ONU

Portal da ONU – Direitos Humanos

Portal da Presidência da República – Casa Civil – Subchefia para Assuntos Jurídicos

Portal do Senado Federal

WorldLII

 

Série “1922 – Hoje, há 100 anos” X – A morte do escritor Lima Barreto (1881 – 1922)

Com uma imagem do acervo da Fundação Biblioteca Nacional, uma das instituições fundadoras da Brasiliana Fotográfica, produzida por um fotógrafo ainda não identificado, o portal publica o décimo artigo da Série 1922 – Hoje, há 100 anos sobre a morte do jornalista e escritor Lima Barreto, em 1º de novembro de 1922, de gripe toráxica e colapso cardíaco, em sua casa, na rua Major Mascarenhas, 26, em Todos os Santos, no Rio de Janeiro. Faleceu lendo um exemplar da revista francesa Revue de Deux Mondes. Lima Barreto foi, nas palavras do escritor Monteiro Lobato (1882 – 1948), “o criador de uma nova fórmula de romance. O romance de  crítica social sem doutrinarismo dogmático”. *

 

 

A mesma foto destacada acima foi publicada na notícia de sua morte, na capa da edição do jornal A Noite, de 2 de novembro de 1922.

 

 

Os dois centenários que inspiraram a Série 1922, Hoje, há 100 anos, cujos artigos têm sido publicados na Brasiliana Fotográfica ao longo de 2022, foram o da Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922; e o da Exposição Internacional do Centenário da Independência da República, inaugurada em setembro de 1922. E os dois eventos foram temas que interessaram Lima Barreto.

Por exemplo, o escritor criticou a ligação dos intelectuais paulistas do Modernismo com o artista italiano Filippo Marinetti (1876 – 1944), em um texto publicado na revista Careta (Careta, 22 de julho de 1922). 

 

 

Foi chamado de “escritor de bairro” na resposta à critica, publicada na coluna Luzes & Refrações, da revista Klaxondivulgadora do Modernismo no Brasil, que foi editada entre 15 de maio de 1922 e janeiro de 1923 (Klaxon, 15 de agosto de 1922).

 

 

O último artigo de Lima Barreto publicado na revista Careta, após sua morte, na edição de 11 de novembro de 1922, foi justamente sobre a Exposição Internacional do Centenário da Independência da República: Uma sorpreza da exposição.

 

 

Também foi um crítico do desmonte do Morro do Castelo, realizado justamento devido à realização da Exposição do Centenário, e escreveu sobre o assunto. Destacamos aqui o artigo Megalomania (Careta, 28 de agosto de 1920). Em 1905, havia escrito a crônica O subterrâneo do Morro do Castelo (Correio da Manhã de 28 de abril de 1905, terceira coluna).

 

 

Sua preocupação com a destruição e o desrespeito pelo patrimônio histórico e pela cultura brasileira fica evidente em seu conto O Moleque, publicado no livro Histórias e Sonhos, em 1920, do qual destacamos um trecho:

“Há, parece, na fatalidade destas terras, uma necessidade de não conservar impressões das sucessivas camadas de vida que elas deviam ter presenciado o desenvolvimento e o desaparecimento. Estes nomes tupaicos mesmo tendem a desaparecer, e todos sabem que, quando uma turma de trabalhadores, em escavações de qualquer natureza, encontra uma igaçaba, logo se apressam em parti-la, em destruí-la como coisa demoníaca ou indigna de ficar entre os de hoje. A pobre talha mortuária dos tamoios é sacrificada impiedosamente.

Frágeis eram os artefatos dos índios e todas as suas outras obras; frágeis são também as nossas de hoje, tanto assim que os mais antigos monumentos do Rio são de século e meio; e a cidade vai já para o caminho dos quatrocentos anos.

O nosso granito vetusto, tão velho quanto a terra, sobre o qual repousa a cidade, capricha em querer o frágil, o pouco duradouro. A sua grandeza e a sua antiguidade não admitem rivais.

Ainda hoje esse espírito do lugar domina a construção dos nossos edifícios públicos e particulares, que estão a rachar e a desabar, a todo instante. E como se a terra não deseje que fiquem nela outras criações, outras vidas, senão as florestas que ela gera, e os animais que nestas vivem.

Ela as faz brotar, apesar de tudo, para sustentar e ostentar um instante, vidas que devem desaparecer sem deixar vestígios. Estranho capricho…

Quer ser um recolhimento, um lugar de repouso, de parada, para o turbilhão que arrasta a criação a constantes mudanças nos seres vivos; mas só isto, continuando ela firme, inabalável, gerando e recebendo vidas, mas de tal modo que as novas que vierem não possam saber quais foram as que lhes antecederam.

Desde que as suas rochas surgiram, quantas formas de vida ela já viu? Inúmeras, milhares; mas de nenhuma quis guardar uma lembrança, uma relíquia, para que a Vida não acreditasse que podia rivalizar com a sua eternidade.

Mesmo os nomes índios, como já foi observado, se apagam, vão se apagando, para dar lugar a nomes banais de figurões ainda mais banais, de forma que essa pequena antiguidade de quatro séculos desaparecerá em breve, as novas denominações talvez não durem tanto.

Nenhum testemunho, dentro em pouco, haverá das almas que eles representam, dessas consciências tamoias que tentaram, com tais apelidos, macular a virgindade da incalculável duração da terra. Sapopemba é já um general qualquer, e tantos outros lugares do Rio de janeiro vão perdendo insensivelmente os seus nomes tupis”.

 

Brevíssimo perfil de Lima Barreto (1881 – 1922)

 

“Passemos além: mais do que nenhuma outra arte, mais fortemente possuindo essa capacidade de sugerir em nós o sentimento que agitou o autor ou que ele simplesmente descreve, a arte literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente passar de simples capricho individual, em traço de união, em força de ligação entre os homens, sendo capaz, portanto, de concorrer para o estabelecimento de uma harmonia entre eles, orientada para um ideal imenso em que se soldem as almas, aparentemente mais diferentes, reveladas, porém, por elas, como semelhantes no sofrimento da imensa dor de serem humanos”.

O destino da literatura, por Lima Barreto,

Revista Sousa Cruz, outubro e novembro de 1921

 

 

“Espírito forte, observador preciso, de estilo próprio, Lima Barreto tem o temperamento integral do artista”.

Fon-Fon, 22 de janeiro de 1910

 

Carioca, Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, exatamente sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Filho do tipógrafo Joaquim Henriques de Lima Barreto (1853 – 1922) e da professora primária Amália Augusta (1862 – 1887), que haviam se casado em 1878.  O casal teve mais quatro filhos:  Nicomedes, que nasceu, em 1879, mas viveu apenas oito dias; Evangelina, nascida em 1882; Carlindo, em 1884; e Eliézer, em 1886. Foi afilhado do senador Afonso Celso (1836 – 1912), o Visconde de Ouro Preto.

 

 

Lima Barreto era negro e neto de escravizados e sua vida foi fortemente marcada pelo preconceito racial, como fica evidenciado em sua crônica O Pecado (1904) (Revista Souza Cruz, agosto de 1924).

 

 

Esteve presente, com seu pai, tanto no Largo do Paço para testemunhar a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, como, alguns dias depois, em 17 de maio, na Missa Campal do Campo de São Cristóvão.

Sobre o Dia da Abolição da da Missa Campal escreveu uma crônica, Maio, publicada na Gazeta da Tarde, de 4 de maio de 1911.

 

 

Maio

Estamos em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sem emoção que o vejo entrar. Há em minha alma um renovamento; as ambições desabrocham de novo e, de novo, me chegam revoadas de sonhos. Nasci sob o seu signo, a treze, e creio que em sexta-feira; e, por isso, também à emoção que o mês sagrado me traz, se misturam recordações da minha meninice.

Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço.

Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky-scraper; e lá de uma das janelas eu vejo um homem que acena para o povo.

Não me recordo bem se ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo o grande Patrocínio.

Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas…

Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.

Houve missa campal no Campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu pai; mas pouco me recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a “Primeira Missa”, de Vítor Meireles. Era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez… Houve o barulho de bandas de música, de bombas e girândolas, indispensável aos nossos regozijos; e houve também préstitos cívicos. Anjos despedaçando grilhões, alegorias toscas passaram lentamente pelas ruas. Construíram-se estrados para bailes populares; houve desfile de batalhões escolares e eu me lembro que vi a princesa imperial, na porta da atual Prefeitura, cercada de filhos, assistindo àquela fieira de numerosos soldados desfiar devagar. Devia ser de tarde, ao anoitecer.

Ela me parecia loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado. Nunca mais a vi e o imperador nunca vi, mas me lembro dos seus carros, aqueles enormes carros dourados, puxados por quatro cavalos, com cocheiros montados e um criado à traseira.

Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos.

Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão.

Quando fui para o colégio, um colégio público, à rua do Resende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado.

A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre!

Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia.

Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: “Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?”

Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!

Dos jornais e folhetos distribuídos por aquela ocasião, eu me lembro de um pequeno jornal, publicado pelos tipógrafos da Casa Lombaerts. Estava bem impresso, tinha umas vinhetas elzevirianas, pequenos artigos e sonetos. Desses, dois eram dedicados a José do Patrocínio e o outro à princesa. Eu me lembro, foi a minha primeira emoção poética a leitura dele. Intitulava-se “Princesa e Mãe” e ainda tenho de memória um dos versos:

“Houve um tempo, senhora, há muito já passado…”

São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo.

Oh! O tempo! O inflexível tempo, que como o Amor, é também irmão da Morte, vai ceifando aspirações, tirando presunções, trazendo desalentos, e só nos deixa na alma essa saudade do passado às vezes composta de coisas fúteis, cujo relembrar, porém, traz sempre prazer.

Quanta ambição ele não mata! Primeiro são os sonhos de posição: com os dias e as horas e, a pouco e pouco, a gente vai descendo de ministro a amanuense; depois são os do Amor – oh! como se desce nesses! Os de saber, de erudição, vão caindo até ficarem reduzidos ao bondoso Larousse. Viagens… Oh! As viagens! Ficamos a fazê-las nos nossos pobres quartos, com auxílio do Baedecker e outros livros complacentes.

Obras, satisfações, glórias, tudo se esvai e se esbate. Pelos trinta anos, a gente que se julgava Shakespeare, está crente que não passa de um “Mal das Vinhas” qualquer; tenazmente, porém, ficamos a viver, esperando, esperando… o quê? O imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois. Esperando os milagres do tempo e olhando o céu vazio de Deus ou deuses, mas sempre olhando para ele, como o filósofo Guyau.

Esperando, quem sabe se a sorte grande ou um tesouro oculto no quintal?

E maio volta… Há pelo ar blandícias e afagos; as coisas ligeiras têm mais poesia; os pássaros como que cantam melhor; o verde das encostas é mais macio; um forte flux de vida percorre e anima tudo…

O mês augusto e sagrado pela poesia e pela arte, jungido eternamente à marcha da Terra, volta; e os galhos da nossa alma que tinham sido amputados – os sonhos, enchem-se de brotos muito verdes, de um claro e macio verde de pelúcia, reverdecem mais uma vez, para de novo perderem as folhas, secarem, antes mesmo de chegar o tórrido dezembro.

E assim se faz a vida, com desalentos e esperanças, com recordações e saudades, com tolices e coisas sensatas, com baixezas e grandezas, à espera da morte, da doce morte, padroeira dos aflitos e desesperados…

 

 

Lima Barreto frequentou a Escola Pública Municipal da rua do Rezende, o Liceu Popular Niteroiense, o Ginásio Nacional (antigo Colégio Pedro II) e o internato do Colégio Paula Freitas.

 

Acervo da Fundação Biblioteca Nacional

Acervo da Fundação Biblioteca Nacional

 

Ingressou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro onde iniciou o curso de Engenharia, que teve que abandonar, em 1903, devido à necessidade de sustentar seus irmãos, já que seu pai teve um diagnóstico de neurastenia. No mesmo ano, passou no concurso de amanuense da Secretaria da Guerra.

 

 

Boêmio, foi um crítico contundente da mentalidade burguesa de sua época. Amava e criticava o Rio de Janeiro, sua cidade natal, de onde nunca saiu. Segundo a crítica literária Beatriz Resente: “O Rio de Janeiro das crônicas de Lima Barreto é a cidade dos contrastes, das revoltas, das ruínas sob o vento do progresso, mas é também a expressão de uma paixão tão forte que a outras, mais humanas, não deixa espaço”.

 

“Lima Barreto foi com efeito a figura mais original de boêmio que teve nos últimos tempos a intelectualidade carioca”.

José Garcia Margiocco (18? – 1923), escritor e jornalista

(Careta, 11 de novembro de 1922)

 

Colaborou em diversos jornais e revistas, dentre eles Careta, Fon-FonGazeta da TardeFloreal (dirigida por ele).

 

 

Seu romance de estreia foi Recordações do Escrivão Isaías Caminha, cujo personagem central foi inspirado em Edmundo Bittencourt (1866 – 1943), dono do Correio da Manhã (Careta, 5 de fevereiro de 1910). É considerada sua obra-prima o livro Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), publicado inicialmente em folhetins, entre agosto e outubro de 1911, na edição da tarde do Jornal do Commercio (Correio Paulistano, 29 de junho de 1916, primeira coluna; A Noite, 1º de outubro de 1916, primeira coluna). Outros de seus livros foram o Cemitério dos VivosHistórias e Sonhos, o último publicado enquanto estava vivo; Os BruzundangasClara dos Anjos e Diário Íntimo. Seus temas, como a denúncia da discriminação racial, a defesa dos excluídos da sociedade, a luta pelos direitos civis e a crítica aos políticos, dentre outros, continuam muito atuais.

Sobre Lima Barreto, o escritor Monteiro Lobato (1882 – 1948) escreveu, em 1º de outubro de 1916, numa carta para o também escritor Godofredo Rangel (1884 – 1851):

“Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda-d’água”.

Livraria da Universidade de Santa Maria

 

Ao longo de sua vida, foi internado duas vezes no Hospício Nacional de Alienados, originalmente Hospício de Pedro II, devido ao alcoolismo: em 1914, quando ficou lá durante dois meses; e, no Natal de 1919 – ficou até fevereiro de 1920. Durante esta segunda internação começou a escrever o romance inacabado Cemitério dos Vivos.

“Voltei para o pátio. Que coisa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio de muitos outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já me conhecia da outra vez. Chamava-me você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde me deu um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria. Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela”.

 

 

Como já mencionado, Lima Barreto faleceu, em 1º de novembro de 1922, Dia de Todos os Santos (Jornal do Brasil, 3 de novembro de 1922).

Poucos dias após sua morte, o escritor Coelho Neto (1864 – 1934) escreveu sobre ele na edição do Jornal do Brasil de 5 de novembro de 1922:

 

 

Na edição da revista Careta, de 11 de novembro de 1922, foi publicado o artigo O bohemio immortal, do jornalista e escritor gaúcho José Garcia Margiocco (18? – 1923).

 

 

O escritor Enéas Ferraz (1896 – 1977), autor de A História de João Crispim, uma biografia romanceada de Lima Barreto, prestou uma homenagem ao escritor na crônica A Morte do Mestre (O Paiz, 20 de novembro de 1922). Sobre o livro de Ferraz, Lima Barreto havia escrito a crítica História de um Mulato, publicada em O Paiz, 17 de abril de 1922.

Lima Barreto ficou invisibilizado durante décadas talvez devido à ascenção, no Brasil, da eugenia, uma espécie de racismo científico. Sobre o tema ele havia escrito a crônica Considerações Oportunas, publicada no ABC, em 16 de agosto de 1919. Dez anos depois, realizou-se o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, no Rio de Janeiro, entre 30 de junho e 7 de julho de 1929. O evento integrava as comemorações do centenário da Academia Nacional de Medicina (Correio da Manhã, 31 de maio, sétima coluna; e 2 de julho, primeira coluna; de 1929).

A obra de Lima Barreto foi resgatada nos anos 50, quando foi publicado o livro A vida de Lima Barreto 1881-1922 (1952), de Francisco Assis Barbosa (1914 – 1991). Em 1953, foi inaugurada a Biblioteca Lima Barreto, em Madureira; e, em 1956, sob a organização de Assis Barbosa, foi iniciada a publicação, pela Editora Brasiliense, de sua obra completa, em 17 volumes. Em 1982, foi o homenageado pela Escola de Samba Unidos da Tijuca, cujo enredo foi Lima Barreto – Mulato, pobre, mas livre. Já no século XXI, o escritor foi o homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2017.

Uma curiosidade: foi um dos 40 escritores que elegeu Olavo Bilac (165 – 1918) O Príncipe dos Poetas Brasileiros em um concurso promovido pela revista Fon-Fon, em 1913 (Fon-Fon, 4 de janeiro de 1919).

 

 

Outra curiosidade: J. Caminha, Leitor, Aquele, Amil, Eran, Jonathan, Inácio Costa foram pseudônimos usados por Lima Barreto e identificados pelo pesquisador Felipe Botelho Corrêa, que resultou na descoberta de 164 textos inéditos em livro e que foram reunidos na obra Sátiras e outras subversões, publicado em 2016. Lima Barreto também usou os pseudônimos Alfa Z, Phileas Fogg, Puck, Rui de Pina e S. Holmes. 

Uma última curiosidade: O jornalista Irineu Marinho (1876 – 1925), que foi colega de Lima no Liceu Niteroiense, batizou seu jornal, fundado em 1925, como O GLOBO, nome do jornal fictício criado pelo escritor no livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

 

Andrea C. T. Wanderley

Editora e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

 

Fontes:

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto (1881- 1922). São Paulo : Autêntica Editora, 2017.

Blog Lobato com você

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

O GLOBO, 28 de julho de 2016

RESENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. São Paulo : Autêntica Editora, 1993.

SANTOS, André Luiz dos. Caminhos de alguns ficcionistas brasileiros após as Impressões de Leitura de Lima Barreto. Rio de Janeiro, 2007. Tese (Doutorado em Letras – Área de Concentração: Literatura Brasileira) – Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto, triste visionário. São Paulo : Companhia das Letras, 2017.

Portal Literafro

Portal O Tempo

 

Ouça aqui o podcast lançado pela Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, em comemoração ao centenário de morte do escritor: Lima Barreto: o negro é a cor mais cortante.

 

Leia aqui o artigo A pena engajada de Lima Barreto, de Guilherme Tauil, publicado no portal Crônica Brasileira, do Instituto Moreira Salles.

* O primeiro parágrafo do artigo foi modificado em 12 de novembro de 2022.

 

Links para os artigos já publicados da Série 1922 – Hoje, há 100 anos

Série 1922 – Hoje, há 100 anos I – Os Batutas embarcam para Paris, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, publicado em 29 de janeiro de 2022

Série 1922 – Hoje, há 100 anos II- A Semana de Arte Moderna, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, publicado em 13 de fevereiro de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos III – A eleição de Artur Bernardes e a derrota de Nilo Peçanha, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, publicado em 1º de março de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos IV – A primeira travessia aérea do Atlântico Sul, realizada pelos aeronautas portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicada em 17 de junho de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos V – A Revolta do Forte de Copacabana, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicada em 5 de julho de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos VI e série Feministas, graças a Deus XI – A fundação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 9 de agosto de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos VII – A morte de Gastão de Orleáns, o conde d´Eu (Neuilly-sur-Seine, 28/04/1842 – Oceano Atlântico 28/08/1922), de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 28 de agosto de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos VIII – A abertura da Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil e o centenário da primeira grande transmissão pública de rádio no país, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 7 de setembro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos IX – O centenário do Museu Histórico Nacional, de autoria de Maria Isabel Lenzi, historiadora do Musseu Histórico Nacional, publicado em 12 de outubro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos XI e série Feministas, graças a Deus XII 1ª Conferência pelo Progresso Feminino e o “bom” feminismo, de autoria de Maria Elizabeth Brêa Monteiro, antropóloga do Arquivo Nacional, publicado em 19 de dezembro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série “1922 – Hoje, há 100 anos” III – A eleição de Artur Bernardes e a derrota de Nilo Peçanha

No 3º artigo da Série 1922 – Hoje, há 100 anos, A eleição de Artur Bernardes e a derrota de Nilo Peçanha, a Brasiliana Fotográfica traz três fotografias de Artur Bernardes (1875 – 1955), da Coleção Presidentes da República, e oito de Nilo Peçanha (1867 – 1924), todas do acervo do Museu da República, uma das instituições parceiras do portal. Uma das imagens de Bernardes foi produzida pela Annunciato Photo e as outras duas são de autoria de fotógrafos ainda não identificados. Um dos registros de Nilo Peçanha, o candidato derrotado, é de autoria de Juan Gutierrez (c. 1860 -1897). Há também a imagem do verso de um estojo de madeira que protege o álbum fotográfico da Escola de Aprendizes e Artífices do Estado de Alagoas, que já foi tema de um artigo do portal, onde Nilo aparece desenhado entre as bandeiras do Brasil e de Alagoas.

 

O candidato vitorioso, Artur Bernardes (1875 – 1955)

 

 

Acessando o link para as fotografias de Artur Bernardes disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

Mineiro de Viçosa, Artur Bernardes foi eleito pelo Partido Republicano Mineiro, em 1º de março de 1922, quando derrotou Nilo Peçanha, candidato do Movimento Reação Republicana, tornando-se o 12º presidente do Brasil (O Jornal, 2 de março de 1922).

No mesmo mês de março, foi fundado o Partido Comunista do Brasil, por iniciativa do Grupo Comunista de Porto Alegre, que realizou, no Rio e em Niterói, nos dias 25, 26 e 27 de março, um congresso. Abílio de Nequete (1888 – 1960) foi eleito secretário geral.

 

 De pé, da esquerda para a direita: Manuel Cendon, Joaquim Barbosa, Astrogildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva; sentados, da esquerda para a direita: Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro / Nosso Século

De pé, da esquerda para a direita: Manuel Cendon, Joaquim Barbosa, Astrogildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva; sentados, da esquerda para a direita: Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro / Nosso Século

 

Voltando às eleições: foram 466.877 votos contra 317.714 e o pleito dividiu o país: Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul deram apoio a Nilo Peçanha enquanto Minas Gerais e São Paulo apoiaram a candidatura de Bernardes, que tomou posse em 15 de novembro de 1922 e ficou no cargo até 15 de novembro de 1926. Governou grande parte de seu mandato sob estado de sítio, decretado por ele.

 

 

Formado em Direito, Bernardes foi vereador, deputado, secretário das Finanças e governador de Minas Gerais antes de chegar à presidência da República. Sua eleição para o governo de Minas representou a ascensão de uma nova geração de políticos no estado e durante seu mandato fez grande oposição às atividades do proprietário da Itabira Iron Ore Company, o empresário norte-americano Percival Farquhar (1865–1953).

Era o representante da política que ficou conhecida como Café com Leite, que alternava candidatos das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. Durante a campanha presidencial houve o episódio das cartas falsas: ele foi acusado de ter escrito cartas ao senador Raul Soares (1877 – 1924), publicadas no jornal Correio da Manhã, atacando seu opositor, Nilo Peçanha, chamado de moleque, e o marechal Hermes da Fonseca (1855 – 1923) referido como um sargentão sem compostura, o que acirrou os ânimos dos militares contra sua candidatura. Bernardes chegou ao Rio de Janeiro, em 15 de outubro de 1921, para apresentar sua plataforma de governo e foi recebido por uma multidão raivosa na avenida Rio Branco. Houve um quebra-quebra na cidade e seus retratos foram arrancados das vitrines das lojas e queimados (Correio da Manhã, 9 de outubro, última coluna13 de outubro16 de outubro de 1921).

 

 

Os reponsáveis pelas cartas foram Jacinto Cardoso de Oliveira Guimarães, Oldemar Lacerda e Pedro Burlamaqui e, ainda durante a campanha, foi provado que haviam sido forjadas, mas a contestação a Bernardes nos meios militares já era irreversível. Apesar da importante crise política, Artur Bernardes se elegeu, mas, durante seu governo, enfrentou o movimento tenentista, que deu início a um processo de ruptura política que teria como consequência a Revolução de 1930. Seu governo foi fortemente marcado pela dura repressão a seus oposiocionistas e pela censura à imprensa.

 

 

Curiosidades: Freire Júnior (1881 – 1956) e Luiz Nunes Sampaio (1886 – 1953) compuseram a marcha carnavalesca conhecida como “Ai, Seu Mé”, em 1922. Seu Mé era um apelido dado pela oposição a Bernardes. Versos como O queijo de Minas está bichado, seu Zé Não seu porquê é, não sei porquê é Aí, seu Mé! Aí Mé, Mé Lá no Palácio das Águias, Olé Não hás de pôr o pé ironizavam o candidato. Apesar de nas gravações da música não aparecer o nome dis compositores e sim o nome do conjunto A Canalha das Ruas, com a eleição de Bernardes, eles foram presos. Ouça aqui a músicas.

O compositor José Barbosa da Silva, conhecido pelo pseudônimo Sinhô (1888 – 1930), também compôs uma música alfinetando Artur Bernardes. Foi a marcha carnavalesca Fala baixo, cujo título denunciava a censura policial da época. Nos versos, as invocações de uma “rolinha”, que era o apelido injurioso dado a Artur Bernardes pelos jornais do Rio, complicaram a vida do artista que foi perseguido e teve que sumir por uns tempos.

 

 Fala baixo (1919-1921)
Quero te ouvir cantar 
Vem cá, rolinha, vem cá 
Vem para nos salvar 
Vem cá, rolinha, vem cá 
Não é assim 
Não é assim 
Não é assim 
Que se maltrata uma mulher 
És a minha paixão 
Vem cá, rolinha, vem cá 
És o meu coração 
Vem cá, rolinha, vem cá 
Não é assim…

 

Um pouco sobre o candidato derrotado, Nilo Peçanha (1867 – 1924) 

 

 

O candidato derrotado nas eleições presidenciais de 1922, Nilo Peçanha, era fluminense, de Campos de Goytacazes. Sua candidatura iniciou o movimento chamado de Reação Republicana que protestava contra as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. Inaugurava-se, então, o nilismo – uma nova forma de fazer política.

 

 

 

Acessando o link para as fotografias de Nilo Peçanha disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

Já havia sido presidente, o primeiro com um perfil popular, entre junho de 1909 e novembro de 1910, quando Afonso Pena (1847 – 1909) faleceu no exercício do cargo (Gazeta de Notícias, 15 de junho de 1909, sétima coluna). Quando assumiu a presidência, Peçanha declarou que as bases de seu governo seriam a paz e o amorEra formado em Direito e antes de chegar à presidência participou das campanhas abolicionista e republicana e havia sido deputado, governador do Rio de Janeiro e vice-presidente da República. Depois foi ministro das Relações Exteriores e senador. Era um excelente orador, fazia frequentemente discursos em praças do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Gostava de andar pelas ruas da cidade, parando em bares e lojas para conversar.

Foi, muitas vezes, vítima de racismo. Segundo o diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras, Alberto Costa e Silva:

“Nilo Peçanha era mulato escuro, assim como diversos outros presidentes da república, a começar por Rodrigues Alves, que era mulato, e também Washington Luís. A questão é que nenhum desses políticos brasileiros era considerado mulato ou negro. Eles eram tidos como brancos, por terem uma posição social elevada. Faziam parte do “mundo dos brancos”, e não de uma minoria. A população dita “branca” no Brasil na realidade era composta por muitos mestiços”.

Revista Época, 22 de novembro de 2008

 

 

Conforme já abordado pelo artigo publicado na Brasiliana Fotográfica, em 26 de março de 2020, Escola de Aprendizes e Artífices de Alagoas, 1910, de Paulo Celso Corrêa, cientista político do Arquivo Histórico e Institucional do Museu da República, as Escolas de Aprendizes e Artífices foram criadas durante o governo do presidente Nilo Peçanha, em 1909. Sob a responsabilidade do recém-criado Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, elas ofereciam ensino primário e profissional para menores de idade pobres, com a finalidade de formá-los em operários e contramestres para a indústria. Com o texto, estão disponibilizadas as 14 fotos de um álbum da Coleção Nilo Peçanha referentes ao tema. São cenas dos cinco primeiros meses de funcionamento da escola, com as crianças tendo aulas e participando de oficinas de marcenaria, funilaria, sapataria, entre outras. Em 1937, as Escolas de Aprendizes e Artífices foram transformadas em Liceus de Artes e Ofícios. Estas instituições de ensino técnico e profissionalizante deram origem às posteriores Escolas Técnicas, Centros Federais de Educação Tecnológica e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.

 

 

Também criou o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), precursor da Funai, em 1910. O primeiro diretor do órgão foi o marechal Cândido Rondon (1865 – 1958).

 

 

Andrea C.T. Wanderley

Editora e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

Fontes:

Atlas Histórico do Brasil

BARTZ, Frederico Duarte. Abílio de Nequete (1888-1960): os múltiplos caminhs de uma militância operária. Dossiês Mundo do Trabalho, 14 de janeiro de 2011 in História Social, uma publicação semestral dos alunos do Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp.

Blog do Luis Nassif

Casa do Choro

CPDOC – Artur BernardesNilo Peçanha, PCB e Raul Soares

FRANZINI, Fábio. No campo das ideias – Gilberto Freyre e a invenção da brasilidade futebolística. Departamento de História da Unesp

Folha de São Paulo, 18 de outubro de 2019

GGN – O jornal de todos os Brasis

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional 

Nosso Século

 

Links para os artigos já publicados da Série 1922 – Hoje, há 100 anos

Série 1922 – Hoje, há 100 anos I – Os Batutas embarcam para Paris, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, publicado em 29 de janeiro de 2022

Série 1922 – Hoje, há 100 anos II- A Semana de Arte Moderna, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, publicado em 13 de fevereiro de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos IV – A primeira travessia aérea do Atlântico Sul, realizada pelos aeronautas portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicada em 17 de junho de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos V – A Revolta do Forte de Copacabana, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicada em 5 de julho de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos VI e série Feministas, graças a Deus XI – A fundação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 9 de agosto de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos VII – A morte de Gastão de Orleáns, o conde d´Eu (Neuilly-sur-Seine, 28/04/1842 – Oceano Atlântico 28/08/1922), de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 28 de agosto de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos VIII – A abertura da Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil e o centenário da primeira grande transmissão pública de rádio no país, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 7 de setembro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos IX – O centenário do Museu Histórico Nacional, de autoria de Maria Isabel Lenzi, historiadora do Musseu Histórico Nacional, publicado em 12 de outubro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos X –  A morte do escritor Lima Barreto (1881 – 1922), de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 1º denovembro de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos XI e série Feministas, graças a Deus XII 1ª Conferência pelo Progresso Feminino e o “bom” feminismo, de autoria de Maria Elizabeth Brêa Monteiro, antropóloga do Arquivo Nacional, publicado em 19 de dezembro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série “1922 – Hoje, há 100 anos” I – Os Batutas embarcam para Paris, em 29 de janeiro – Uma história de música e de racismo

A Brasiliana Fotográfica inaugura a Série 1922 – Hoje, há 100 anos com o artigo Os Batutas embarcam para Paris, em 29 de janeiro – Uma história de música e de racismo, contando um pouco da história da turnê parisiense dos Batutas, considerado o primeiro grupo de música popular brasileira a alcançar projeção internacional. Tinha, entre seus integrantes, dois expoentes: o virtuoso Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha (1897 – 1973), o maior chorão de todos os tempos; e Joaquim Maria dos Santos, o Donga (1891 – 1974), um dos autores daquele que é um dos primeiros sambas gravados no Brasil, Pelo Telefone, registrado em 27 de novembro de 1916.

“A verdade é que o choro me agrada mais por ser mais trabalhado, com três partes, cada uma delas com dezesseis compassos, e não apenas oito, como no samba. Depois, o choro, que me parece originado da polca (uma das músicas de salão da época), era para mim a forma metódica através da qual eu podia expressar meus sentimentos”

Pixinguinha (1966)

“O ritmo caracteriza um povo. Quando o homem primitivo quis se acompanhar, bateu palmas. As mãos foram, portanto, um dos primeiros instrumentos musicais. Mas como a humanidade é folgada e não quer se machucar, começou a sacrificar os animais, para tirar o couro. Surgiu o pandeiro. E veio o samba. E surgiu o brasileiro, povo que lê música com mais velocidade do que qualquer outro no mundo, porque já nasce se mexendo muito, com ritmo, agitadinho, e depois vira capoeira até no enxergar”.

Donga (1966)

Ao longo do ano, serão publicados no portal artigos com imagens de fatos importantes ocorridos em 1922 como a Semana de Arte Moderna e a Exposição do Centenário da Independência do Brasil. A temporada dos Batutas que, em 29 de janeiro de 1922, embarcaram para a França, foi um sucesso e causou polêmica e ataques racistas, veiculados na imprensa brasileira. Uma curiosidade: os Batutas e o fotógrafo Marc Ferrez (1843 – 1923) retornaram da França no mesmo navio, o Lutetia, e chegaram ao Brasil em 14 de agosto de 1922.

 

 

Acessando o link para as imagens dos Batutas disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

O dançarino Duque, o empresário Arnaldo Guinle e os Oito Batutas

 

“Pixinguinha nem sequer era músico. Era música – e essa seria a melhor palavra para defini-lo, explicá-lo e amá-lo”.

Carlos Heitor Cony

O dentista, dançarino, compositor e jornalista baiano Antônio Lopes de Amorim Diniz (1884-1953), conhecido como Duque, conheceu no Assyrio, cabaré no subsolo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, os Oito Batutas, que tocavam enquanto ele dançava com sua parceira, a dançarina e manequim francesa Gaby, entre fins de 1921 e início de 1922.

Foi noticiado que Pixinguinha tinha reassumido a função de diretor de harmonia do bloco carnavalesco de Reinado de Siva.

 

 

Mas então:

“Menos de três semanas depois, Pixinguinha estava trocando o palácio do Reinado de Siva, na rua Senador Pompeu pelo Shérérazade, 16, Faubourg Montmartre, em Paris. Isto porque, nessas três semanas abençoadas, Ogum resolveu usar sua espada para abrir as portas do mundo para seu filho de fé e seus sete companheiros. Para transportá-los, usou como veículo o Assyrio, cabaré instalado no subsolo do Teatro Municipal. Ali são ouvidos todas as noites pela fina flor da sociedade boemia carioca. Ali, no mesmo espetáculo, um casal de bailarinos de fama internacional empolga o público dançando o ritmo que, durante anos e anos, fora uma dança excomungada, anatematizada, proibida às moças e aos rapazes de família. Duque e Gaby dançam o maxixe, ou la matchiche, como preferiam os almofadinhas da época”.

Filho de Ogum Bexiguento, página 49.



 

Segundo Pixinguinha, na Série Depoimentos:

“Bem, o Duque era um bailarino aristocrático. Ele dançava um maxixe aristocrático. Era um malabarista. Duque empolgou todo mundo. Não era um maxixe como a gente via em certos lugares. Era um sujeito muito delicado. Dançava um maxixe clássico. Quando chegamos em Paris conhecemos a academia dele. Era uma academia que ensinava a dança do maxixe brasileiro. Quando Duque chegava no salão, todo mundo disputava o privilégio de dançar com ele. Eram princesas, reis, etc, Sim, senhores, até rei apareceu para dançar com ele. Foi ele que pediu ao Arnaldo Guinle para nos levar para Paris. Ele gostava muito do que a gente fazia e interpretava a nossa música nos pés. Depois de quatro compassos ele já estava criando coisas novas nos pés. E tinha a Gaby, uma francesa que compreendia perfeitamente o Duque”.

 

O Duque havia se mudado de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1906. Três anos depois, começou a viajar pelo mundo. Chegou em Paris, conforme artigo que escreveu para a revista O Cruzeiro, em 1912, quando passou a dançar em restaurantes e bares com a dançarina ítalo-brasileira Maria del Nigri, conhecida como Maria Lino, a Rainha do Maxixe (c. 1880 – 1940). Ganharam, em 1913, o primeiro prêmio em uma competição em Berlim. Também foram suas parceiras Arlette Dorgère (1880 -1965) e Gaby. Tornou-se dono de academias de dança em Paris e no Rio de Janeiro, tendo sido responsável pela difusão do maxixe em capitais como Berlim, Buenos Aires, Montevidéu, Londres, Nova York e Paris, numa época em que o ritmo era considerado imoral por boa parte da sociedade brasileira. Em 1921, havia, após uma temporada no Brasil com sua parceira Gaby, retornado à França, onde estrelou um espetáculo na Ópera de Paris com o compositor e violinista paulista Nicolino Milano (1876 – 1962) e apresentou o samba na peça La Proie (A Presa), de Regina Regis de Oliveira (18? – 1956), no Teatro Albert I, também em Paris. Foi provavelmente a primeira exibição de samba em um palco europeu (L´Esprit Nouveau, página 106A Gazeta (SP), 8 de março de 1921, sexta colunaJornal do Brasil, 2 de abril de 1921, terceira coluna D. Quixote, 18 de maio de 1921, primeira coluna).

 

 

Foi, como mencionado por Pixinguinha, o Duque que pediu ao empresário Arnaldo Guinle (1884 – 1963) que patrocinasse a excursão dos Batutas à França, em janeiro de 1922, para a divulgação da música popular brasileira no cenário internacional. Mecenas das artes e dos esportes, Arnaldo Guinle foi um dos homens mais ricos do Brasil, cuja fortuna era oriunda da exploração do Porto de Santos. Além do suporte financeiro de Guinle, Duque conseguiu apoio político-diplomático de Lauro Müller (1863 – 1926), o que, segundo o antropólogo Rafael José de Menezes Bastos, imprimiu na jornada uma idéia, diríamos, de missão quase diplomática. Duque e Guinle haviam se conhecido na França, já que Guinle vivia entre o Rio de Janeiro e Paris. O general e engenheiro militar Lauro Müller, ministro das Relações Exteriores entre 1912 e 1917, havia conhecido os Batutas por ter sido um assíduo frequentador da noite carioca. Mas o governo não contribuiu financeiramente para a viagem. Segundo Donga, em depoimento para o Museu da Imagem e do Som:

“Absolutamente. O grande brasileiro Arnaldo Guinle nos levou para lá sem it, com essa pelezinha escura e tudo, sem medo de levar vaia. Viajamos às custas dele”.

Guinle contratava, desde 1919, os Batutas, que conheceu tocando na sala de espera do Cine Palais, para saraus em sua mansão no bairro das Laranjeiras. Patrocinou, com o apoio de Irineu Marinho (1876 – 1925), fundador do jornal O GLOBO, uma turnê do grupo pelo Brasil, iniciada em outubro de 1919 por São Paulo e Minas Gerais e encerrada, no ano seguinte, pela Bahia e por Pernambuco. O objetivo da turnê, além da realização de apresentações artísticas, era recolher e catalogar ritmos para integrar uma antologia de música folclórica sob a supervisão do escritor Coelho Neto (1864 – 1934) que, por seu estilo literário, considerado ultrapassado, sofreu fortes críticas na Semana de Arte Moderna de 1922, tema do próximo artigo da Série 1922: Hoje, há 100 anos.

 

 

Segundo o depoimento de Donga para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro:

“O dr. Arnaldo, como bom brasileiro que era, simpatizou com a gente. Pensou e combinou com o Coelho Neto uma antologia, recolhendo material através de pessoas idôneas. Ele, junto com o Floresta de Miranda, nos procurou e disse: “amanhã você vai à minha casa em Copacabana”. Eu fui junto com o Pixinguinha. Nós estávamos há 20 dias sem função e o dinheiro tinha acabado. Ele explicou o que queria e perguntou o que achávamos. Nós dissemos que íamos fazer uma excursão ao Norte e o dr. Arnaldo pediu que incluíssemos o João Pernambuco, porque assim ele faria algumas coisas para ele. Assim foi feito, nós fomos a Pernambuco, Bahia, etc, e o João Pernambuco recolheu uma porção de coisas e trouxe. Mas não era o bastante. O dr. Arnaldo disse para o João Pernambuco que ia prosseguir na colheita, mas só que dessa vez levaria um músico para escrever, porque ele só havia trazido letras e músicas de memória. Disse ainda que pagaria tudo. Eu não sei o que eles arranjaram, ele e Pixinguinha, porque o dr. Arnaldo ficou zangado e não quis saber de mais nada. O João Pernambuco era meio egoísta e parece que pediu demais. Eu não sabia de nada. Depois de alguns dias o Patricio Teixeira me deu um recado que o dr. Arnaldo queria falar comigo. Eu fui e ele disse: “Não quero mais saber de histórias com o João Pernambuco e com o Pixinguinha”. Eu então combinei tudo com ele, que exigiu a presença de um músico na viagem. Eu comecei a enrolar um pouco e toda vez que o Floresta de Miranda me procurava para informar ao dr. Arnaldo eu dava sempre uma desculpa: “Olha, eu queria o Zezé, mas ele para escrever música de folclore é difícil e como tem o Pixinguinha, este seria melhor”. Parece que o Floresta de Miranda disse isso ao dr. Arnaldo e ele amoloceu um pouco com respeito ao Pixinguinha. Com o João Pernambuco ele nunca mais falou até morrer. Nas proximidades da viagem eu disse ao dr. Arnaldo: “eu acho que vou levar o Pixinguinha”. Ele respondeu: “você leva quem quiser, apanhe o dinheiro lá na rua Sete de Setembro”. Era tudo pago. Estivemos então em Morro Velho, Minas, Bahia, etc. Pixinguinha trouxe tudo escrito, tudo bem feito, e o dr. Arnaldo ficou satisfeito”.

Segundo o historiador Clóvis Bulcão, essas pesquisas foram responsáveis pelo encontro dos Guinles com Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), pois foi o compositor o encarregado pela organização do material. Em 1923,  Arnaldo Guinle deu a Villa-Lobos duzentos contos de réis para que ele fosse aprimorar sua arte na França.

 

A temporada dos Batutas em Paris (1922)

 

Chegamos ao dia do embarque. No dia 29 de janeiro de 1922, o grupo formado então pelos músicos Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha (1897 – 1973); seu irmão, Octávio (1888 – 1926), conhecido como China; Joaquim Maria dos Santos, o Donga (1891 – 1974); Nelson Alves (1895 – 1960), Sizenando Santos (o Feniano), José Monteiro e José Alves de Lima embarcou no navio transatlântico Massília rumo à França (O Jornal, 24 de janeiro, segunda coluna e 28 de janeiro, última coluna de 1922; O Paiz, 29 de janeiro de 1922, quarta coluna). Os últimos dois substituíram os irmãos Jacob e Raul Palmieri (1887 – 1968), que desistiram da viagem. O baterista Joaquim Silveira Tomás (1898 – 1948), o J. Tomás, adoeceu e não pode viajar com o grupo. Ao longo de sua existência, entre 1919 e 1931, a formação dos Batutas variou.

Para Paris foram mesmo sete batutas. Foi o primeiro conjunto brasileiro a apresentar na Europa a música urbana produzida no Rio de Janeiro na época. Tocaram durante os seis meses que ficaram em Paris, na época a capital cultural do mundo, choros, maxixes, polcas, tangos brasileiros, sambas, lundus, batuques, valsas, cateretês, emboladas, cocos e toadas sertanejas.

 

 

Chegaram em 11 de fevereiro, no porto de Bordeaux, na França e foram recepcionados na Gare d´Orsay, em Paris, no dia seguinte, pelo Duque e pelo jornalista Floresta de Miranda, secretário particular de Guinle. Nos meses seguintes, como Les Batutas, seriam atração fixa numa badalada casa noturna de Paris, o dancing Shéhérazade, na Faubourg Montmartre, 16, cujo diretor artístico era o Duque, responsável pelo convite ao conjunto. O proprietário era G. Calmet.

 

Interior do cabaré Sheherazade

Interior do cabaré Shéhérazade / Pixinguinha, Vida e Obra

 

A chegada do grupo em Paris foi noticiada por alguns jornais franceses:

 

Le Gaulois, 11 de fevereiro de 1922

“Fala-se bastante dos “Batutas” no mundo artístico. É com curiosidade que esperamos por sua muito próxima estreia” / Le Gaulois, 11 de fevereiro de 1922

 

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“Os Batutas, que chegaram do Brasil, farão esta semana sensacional estreia em Paris” / Le Gaulois, 12 de fevereiro de 1922

 

 

“Les Batutas, cet extraordinaire orchestre brésilien, unique au monde, d’une gaieté endiablée, composé de virtuoses surnommés les rois du rythme et de la samba, joue tous les jours aux thés et aux soupers de Shéhérazade, 16, Faubourg Montmartre. Direction: Duque” (Tradução: Os Batutas, esta extraordinária orquestra brasileira, única no mundo, com alegria frenética, composta por virtuosos apelidados de reis do ritmo e do samba, toca todos os dias nos chás e jantares do Shéhérazade, 16, Faubourg Montmartre. Direção: Duque).

 Le Journal, 14 de fevereiro de 1922

 

A Primeira Guerra Mundial havia acabado há pouco tempo e Paris fervilhava na euforia do pós-guerra, ocupada por músicos do mundo inteiro, principalmente dos Estados Unidos e das Antilhas, e por artistas de vanguarda, o que tornava trepidantes a atmosfera cultural da cidade, seu ritmo e sua noite. Eram os Anos Loucos. Como definiu o escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899 – 1961): Paris é uma festa. Os intelectuais estavam interessados em antropologia e por estudos sobre a África, o que propiciava um ambiente receptivo para movimentos artísticos relacionados com a cultura negra, caso dos Batutas, recebidos com simpatia por simbolizar um certo exotismo, em voga na ocasiãoMuitas bandas de jazz apresentavam-se no Shéhérazade, identificado pela imprensa parisiense como um palácio das mil e uma noites. O dancing, onde os Batutas se apresentaram, era frequentado por intelectuais, pela aristocracia, por políticos e artistas de renome – era o ponto de encontro da elite que circulava na capital francesa. Pixinguinha entrou em contato com o charleston, o foxtrote, o shimmie e o ragtime. Foi, posteriormente, acusado de ter sido influenciado pelo jazz norte-americano.

Foi durante a temporada em Paris que Pixinguinha passou a tocar saxofone. Gostou tanto do instrumento que acabou sendo presenteado com um por Arnaldo Guinle, que também enviou para o Brasil uma bateria para J. Tomás, o batuta que na última hora ficou doente e não pode seguir para Paris com o grupo.

 

“Foi em Paris. Quando viajei para lá não tocava saxofone. Tocava flauta. No conjunto que se apresentava na casa em frente aos Shéhérazade, havia um violoncelista que, durante a apresentação, mudava do violoncelo para o saxofone, principalmente na hora de tocar o shimmy. Um dia, Arnaldo Guinle me perguntou: “Você toca aquele instrumento?”. Respondi: “Eu toco”. Na verdade, eu já conhecia a escala do instrumento e sabia que era quase igual à flauta”. Então vou mandar fazer um saxofone pra você”, me disse Arnaldo Guinle. Um mês depois o saxofone estava pronto. Levei o instrumento para o hotel e ensaiei. No outro dia já estava tocando uns chorinhos no saxofone. Mas só toquei naquele dia, porque não queria magoar o músico da casa em frente. Toquei só para o Arnaldo Guinle ver. Ele viu e ficou satisfeito. Depois, fiquei só na flauta. Quando voltei para o Brasil é que passei a tocar mais saxofone. Mas nós trouxemos outras novidades. Na volta, o nosso pessoal estava tocando violão-banjo, cavaquinho-banjo, estas coisas”.

Pixinguinha, na Série Depoimentos

 

As apresentações fizeram sucesso com o público e com a imprensa parisiense. E os Batutas, que haviam sido contratados para uma temporada de um mês no Shéhérazade, com um salário de 3.500 réis, ficaram na cidade por cerca de 6 meses. O grupo executava músicas como Dádiva de Amor, composta por Donga, em Paris; Fala Baixo, de Sinhô (1888 – 1930)Gargalhada, de Pixinguinha; Les Batutas, também de Pixinguinha e com letra de Duque; e Vem vovó, de Álvaro Sandim (1862 – 1919).

 

Le Galois, 25 de fevereiro de 1922

No Shéhérazade: Os Batutas, a célebre orquestra brasileira única no mundo, estreou com gande sucesso no Shéhérazade, o feérico estabelecimento do faubourg Montmartre. Vá ouvir os Batutas, você não vai se arrepender de sua viagem / Le Galois, 25 de fevereiro de 1922

 

 

A partir de maio,  apresentaram-se no Chez Duque, na rue Caumartin, 17, cujo proprietário era o Duque; e, em 1º de junho, eles e a prestigiada Bernard Kay’s American Jazz Band estavam presentes na inauguração dos Chás Dançantes, na Reserve de Saint-Cloud, na boulevard Senard. Fizeram também um show em homenagem ao norte-americano Jack Dempsey (1895 – 1993), campeão mundial dos pesos pesados de 1919 a 1926 (O Imparcial, 15 de agosto de 1922).

 

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Anúncio da inauguração dos Chás Dançantes no La Reserve de Saint-Cloud / Pixinguinha, Vida e Obra

 

Segundo Donga, fizeram uma apresentação para a família real brasileira que residia em Paris. Sebastião Braga, em seu livro O Lendário Pixinguinha, menciona uma apresentação do músico no Conservatório de Paris, quando Pixinguinha teria tocado a polca Gargalhada e os diretores do Instituto de Música da França, em respeito, teriam lhe dado uma flauta de prata. De acordo com o jornalista e musicólogo Lúcio Rangel (1914 – 1979), o primeiro prêmio de flauta do Conservatório de Paris, Harold de Bozzi, teria ficado embasbacado com Pixinguinha.

Por intermédio de Olivia Penteado (1872 – 1934), grande incentivadora do modernismo no Brasil e ligada ao movimento intelectual que desencadeou a Semana de Arte Moderna, os Batutas foram convidados pelo embaixador Luiz Martins de Souza Dantas (1876 – 1954) para participar de uma festa organizada pelo Comitê França-América, no Palais des Affaires Publiques. Souza Dantas (1876 – 1954), que servia como chefe da representação brasileira em Roma e que, em novembro de 1922, assumiu a embaixada brasileira na França, era um dos anfitriões do evento. Vale lembrar que Souza Dantas foi proclamado, no Museu do Holocausto, em Israel, em 2003, Justo entre as nações, por ter arriscado sua vida para ajudar os judeus perseguidos pelo nazimo e pelo fascismo.

 

Le Gaulois, 26 de junho de 1922

Le Gaulois, 26 de junho de 1922

 

A polêmica em torno da ida dos Batutas a Paris – O Racismo

 

Mas aqui no Brasil, a excursão do grupo à Europa suscitou polêmica e debates nos jornais, ora defendendo os Batutas ora os atacando com declarações abertamente racistas. A música popular como representante da cultura nacional também fez parte da discussão. Porém ataques racistas não eram novidades para os Batutas, que foram alvos deles desde seu início, em 1919 (Fon-Fon, 19 de abril de 1919).

“Desde sua fundação Os Oito Batutas geraram polêmica. O fato de serem em sua maioria negros e o tipo de música que faziam eram motivos para controvérsia. Identificá-los à genuína musicalidade nacional, significava para muitos uma desqualificação em termos de uma pretensa universalidade – equacionada com o cânone da música clássico-romântica ocidental – e um veredicto de provincianismo. Além disso, a negritude era vista como sinal de inferioridade sociocultural”.

Rafael José de Menezes Bastos

 

Segundo Sérgio Cabral, no livro Pixinguinha – Vida e Obra (1997), na ocasião da estreia do grupo no Cine Palais, que reabria suas portas, em 1919, o pianista e maestro paulista Júlio Cesar do Lago Reis (1863 – 1933), em sua coluna de música no jornal A Rua, se disse envergonhado com o que considerava um escândalo. Afinal, como poderia um grupo musical composto de afro-descendentes se apresentar em um endereço chique e elegante, um cinema na antiga avenida Central? 

Na Revista da Semana, do início de abril de 1919, em nota atribuida ao jornalista Xavier Pinheiro, veio a resposta à crítica de Júlio Reis que, segundo ele:

“(não aceita) pela sua fina educação artística, que o violão, o cavaquinho, o reco-reco, o chocalho e a flauta interpretem as modinhas, as chulas, os sambas, os tangos e outras composições que tenham cunho nacional, na sala de espera de qualquer cinema da avenida porque isso é ofensivo aos ouvidos educados da grande maioria da nossa sociedade composta de uma boa parte de nossa aristocracia. O defensor de nossa sociedade aristocrática está enganado na apreciação da orquestra dos Oito Batutas. Aqueles rapazes morenos, que levam horas a cantar as encantadoras modinhas da nossa terra e as executam na flauta, no violão, no reco-reco, no cavaquinho e no chocalho, têm sido apreciados pela nossa finíssima sociedade, não têm escandalizado, têm obtido ruidoso sucesso…A Orquestra dos Oito Batutas foi mal apreciada pelo aplaudidíssimo e popular maestro Julio Reis porque aqueles rapazes tocam e cantam com clima, com sentimento, interpretam a música muito melhor do que certos e conceituados artistas que andam por aí…O maestro Júlio Reis foi severo. Foi injustíssimo com os morenos que ganham sua vida com brilho e aplauso no Cine Palais. Eles tocam bem, são da nossa terra, têm compostura, agradam a todos e o povo que ali vai gosta da flauta de Pixinguinha, do violão de Donga, do cavaquinho do Nelson e dos outros caboclos seus companheiros”.

Os ataques racistas, segundo os quais os Batutas desmoralizariam o Brasil levando para Paris o que o país tinha de pior para o seio da civilização da Europa, recrudesceram, em 1922. O cronista A. Fernandes escreveu no Diário de Pernambuco: “Não sei se a coisa é para rir ou para chorar. Seja como for, o boulevard vai se ocupar de nós. Não do Brasil de Arthur Napoleão, de Osvaldo Cruz, de Rui Barbosa, de Oliveira Lima, não do Brasil expoente, do Brasil elite, mas do Brasil pernóstico, negróide e ridículo e de que la chanson oportunamente tomará conta” (Diário de Pernambuco, 1º de fevereiro de 1922, segunda coluna). Uma observação: o destacado político baiano Ruy Barbosa (1849 – 1923) era grande fã dos Batutas e presença frequente nas apresentações do grupo no Cine Palais.

O cronista que se assinava como S, no Jornal do Commercio, em 1º de fevereiro de 1922, descreveu os Batutas como oito, aliás, nove pardavascos que tocam violas, pandeiros e outros instrumentos rudimentares” e lamentava“não haver uma política inexorável que, legalmente, os fisgasse pelo cós e os retirasse de bordo com a manopla rija, impedindo-lhes a partida no liner da Mala Real!”.

Segundo o artigo do jornalista e escritor Benjamin Costallat (1897 – 1961), publicado na Gazeta de Notícias de 22 de janeiro de 1922, foi um verdadeiro escândalo a presença dos Batutas no Cine Palais, em 1919, assim como o anúncio da ida do grupo para Paris. Foram atacados com um desabrido e repugnante racismo:

“Eram  músicos brasileiros que vinha cantar cousas brasileiras. Isso em plena Avenida, em pleno almofadismo, no meio de todos esses meninos anêmicos, frequentadores de “cabarets” que só falam francês e só dançam tango argentino! No meio do internacionalismo das costureiras francesas, das livrarias italianas, das sorveterias espanholas, dos automóveis americanos, das mulheres polacas, do esnobismo cosmopolita e imbecil!

Não faltaram censuras aos modestos “oito batutas”. Aos heróicos “oito batutas” que pretendiam, num  cinema da Avenida, cantar a verdadeira terra brasileira, atráves de sua música popular, sinceramente, sem artifícios nem cabotinismos, ao som espontâneo de seus violões e cavaquinhos.

A guerra que lhes fizeram foi atroz. Como os músicos eram bons, “batutas de verdade”, violeiros e cantadores magníficos, como a flauta de Pixinguinha fosse melhor do que qualquer flauta por aí saída com dez diplomas de dez Institutos, começaram os despeitados a alegar a cor dos “oito batutas”, na maioria pretos”. Segundo os descontentes, era uma desmoralização para o Brasil ter na principal artéria de sua capital uma orquestra de negros! O que iria pensar de nós o estrangeiro?”

O jornal A Noite também antecipou a possibilidade de que haveria quem num melindre idiota reprovasse a ida dos rapazes porque eram de cor (A Noite, 28 de janeiro de 1922).

 

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O Imparcial saudou com entusiasmo a viagem dos Batutas, exímios tocadores de instrumentos nacionais que só executam músicas nacionais, o que só podem considerar como uma das mais altas expressões da arte musical genuinamente brasileira (O Imparcial, 28 de janeiro de 1922, segunda coluna).

 

 

 

Uma carta enviada pelo jornalista Floresta de Miranda, de Paris, defendeu e deu notícias das apresentações dos Batutas na França (Jornal do Recife, 11 de abril de 1922, primeira coluna).

 

 

“Paris, inverno de 1922. Frio de rachar, vários graus abaixo de zero. Duque e eu estávamos na Estação de Quai d´Orsay, esperando o trem de Bordéus. Nesse trem iriam chegar os Oito Batutas. Às 23 horas apareceram os músicos brasileiros, cada qual carregando o seu instrumento. Trajavam roupas leves e tiritavam. Na manhã seguinte Duque os levou a comprar roupas apropriadas para aquele clima. Vem a estreia no Shéhérazade. Sucesso completo. Paris acode àquele dancing. Pixinguinha com a sua flauta infernal faz o diabo. China abafa com o seu violão e a sua bela voz e Donga abafa no pinho e desperta paixões…”

Parte de uma crônica do jornalista Floresta de Miranda

publicada no livro Samba jazz & outras notas

 

Já em fins da década de 1970, o jornalista carioca João Ferreira Gomes, cujo pseudônimo era Jota Efegê (1902 – 1987) e que se destacou como um grande cronista das histórias cariocas, de seus personagens e manifestações culturais, comentou esse tipo de declaração abertamente racista em relação aos Batutas no artigo Para os racistas, os Oito Batutas eram “negróides” e “pardavascos”, publicad0 em O GLOBO.

 

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O GLOBO, 22 de março de 1977

 

Até por políticos a ida dos Batutas à Europa foi questionada. Em 24 de julho de 1922, votava-se na Câmara um auxílio de 40 contos de réis para uma viagem do compositor Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) à Europa. Pedro da Costa Rego (1889 – 1954), representante de Alagoas, deu parecer contrário e Gilberto Amado (1887 – 1969), deputado por Sergipe, ao encaminhar a votação, discordou de seus colegas que combateram a emenda e apelou:

“Negar a Heitor Vila Lobos 40:000$ para que possa tomar passagem e ir à Europa, que nos manda, todos os anos, maestros e pseudomaestros, às vezes abaixo de nossa cultura negar a Vila Lobos o direito de ir à Europa, mostrar que não somos apenas os “Oito Batutas”, que lá sambeiam, é negar que pensamos musicalmente, é uma atitude não digna da Câmara dos Senhores Deputados brasileiros!”

 

O Retorno

“Chiii! Se fosse agora, nós seríamos o Roberto Carlos”

Pixinguinha em depoimento dado, em 1966,

sobre a popularidade dos Batutas quando retornaram de Paris

“Fiquei tão apaixonado pela França que compus uma valsa de seis partes, ganhando um prêmio da Sociedade Francesa de Compositores. Mas era grande a saudade que sentíamos do Rio de Janeiro. Um dia, quando passeávamos por uma rua parisiense, um de nós começou a assobiar uma valsa de Manuel da Harmonia. Não nos contivemos: choramos como crianças”.

Donga(1966)

 

Em 31 de julho de 1922, os Batutas embarcaram no Lutetia, em Bordeauxna França. O navio fez escalas em Boulogne-sur-mer, Vigo e Lisboa e, após cerca de 6 meses, em 14 de agosto de 1922, os músicos chegaram no Rio de Janeiro. Durante a viagem de volta, fizeram algumas apresentações em festas a bordo. Saudades do Brasil, os negócios de Duque que não rendiam muito e a vontade de participar dos festejos do centenário da independência do Brasil foram razões alegadas para o retorno. Além deles, desembarcaram também do navio o fotógrafo Marc Ferrez (1843 – 1923), o inventor Alberto Santos Dumont (1873 – 1932), o presidente do Jockey Clube, Lineu de Paula Machado (1880 – 1942); o empresário Arnaldo Guinle (1884 – 1963); o coronel Buchalet, da missão militar francesa no Brasil, e o médico Paulo de Figueiredo Parreiras Horta (1884 – 1961) (A Noite1º de agosto, primeira coluna, e 14 de agosto de 1922; O Paiz, 15 de agosto de 1922, página 3 e página 4). No artigo do Imparcial, de 15 de agosto, Pixinguinha (1897 – 1973), declarou que não havia animosidade contra os homens de cor na França. Mencionou a presença de músicos de jazz em Paris e disse que os Batutas voltaram para o Brasil para tomar parte nas comemorações pelo centenário da Independência do Brasil.

 

 

“Modéstia à parte, fique sabendo que triunfamos. É bom que se saiba de que quando daqui saímos, animados por uns, ridicularizados por outros, não tinha a estulta pretensão de representar no estrangeiro a arte musical brasileira. O que iríamos apresentar em Paris, e o fizemos com decência, graças a Deus, era apenas uma das feições de nossa música, mas daquela essencialmente popular, característica. Para os que amavam, ficam em nossos corações o reconhecimento e a saudade. Dos outros, preferimos amargar os apodos a discutir. Tocamos para frente!”

Pixinguinha, em entrevista dada ao jornal A Notícia, após a chegada no Rio de Janeiro (Pixinguinha: Vida e Obra)

Durante o mês de setembro, os Batutas fizeram apresentações na Exposição do Centenário da Independência como atração fixa do pavilhão da montadora de automóveis norte-americana General Motors, contando com os reforços da cantora Zaíra de Oliveira (1900 – 1951), mulher de Donga (1890 – 1974)); e do trompetista Bonfiglio de Oliveira (1894 – 1940). Pixinguinha, em entrevista, disse que havia tocado também durante a primeira transmissão radiofônica oficial brasileira, ocorrida em 7 de setembro de 1922. O evento integrou as comemorações do centenário da Independência. Toquei num estudiozinho que havia lá e a Zaíra de Oliveira cantou. O estúdio foi montado no pavilhão dos Estados Unidos.

 

 

Uma estação de 500 watts, montada no alto do Corcovado pela Westinghouse Eletric International em combinação com a Companhia Telefônica Brasileira, irradiou músicas e um discurso do presidente Epitácio Pessoa (1865 – 1942), surpreendendo os visitantes da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, através de 80 receptores vindos dos Estados Unidos, que haviam sido distribuídos às autoridades e instalados em pontos centrais da cidade.

Após diversas apresentações, entre agosto e dezembro de 1922, dentre elas shows promovidos pela famíla Guinle em dois dos mais exclusivos clubes do país, o Fluminense, presidido por Arnaldo Guinle; e o Jockey Club do Rio de Janeiro, cujo presidente era Lineo de Paula Machado, marido de Celina Guinle; os Oito Batutas embarcaram no navio Duque d´Osta para uma temporada no Teatro Empire, em Buenos Aires, sob o comando do empresário José Segreto (O Paiz, 2 de dezembro de 1922, quarta coluna).

 

Os Batutas na imprensa brasileira em 1922

 

Decadência do maxixe… (O Paiz, 4 de janeiro de 1922, última coluna) – Na coluna “Artes e Artistas”, comentário sobre o fato dos Oito Batutas ser o único conjunto musical a privilegiar o maxixe.

Os Oito Batutas estrearam no Cine Theatro Abigail Maia, em Madureira (Correio da Manhã, 7 de janeiro de 1922, terceira coluna; A Noite, 9 de janeiro de 1922, segunda coluna)

Os Oito Batutas apresentavam-se no Cine-Theatro Abigail Maia, em Madureira. Mané Pequeno, imitador de caipiras também participava do espetáculo (O Imparcial, 11 de janeiro de 1922, primeira coluna; O Jornal, 12 de janeiro de 1922, última coluna).

No Cine Theatro Fluminense, em São Cristóvão, com a participação dos Oito Batutas e a apresentação de duas peças, realização de um espetáculo em homenagem ao Clube de São Cristóvão (Correio da Manhã, 13 de janeiro de 1922, quinta coluna; O Jornal, 17 de janeiro, sexta coluna).

Os Oito Batutas tocaram durante uma excursão marítima em comemoração aos 35 anos de formatura de uma turma de médicos (O Paiz, 14 de janeiro de 1922, terceira coluna).

No Trianon, participaram de uma festa em benefício de Christóvão Vasques (O Paiz, 17 de janeiro de 1922, sexta coluna).

Artigo do jornalista e escritor Benjamin Costallat (1897 – 1961) fazendo uma pequena trajetória dos Batutas e criticando o esnobismo imbecil em relação à música popular brasileira e o racismo e defendendo a ida do conjunto para Paris (Correio da Manhã, 22 de janeiro de 1922, penúltima coluna).

Lançamento da música A Carta, de autoria de Pixinguinha (1897 – 1973) e M. Almeida (A Noite, 24 de janeiro de 1922, terceira coluna). 

Sátira aos novos auxiliares do Ministério da Fazenda, chamando-o de Oito Batutas (D. Quixote, 25 de janeiro de 1922).

Os Oito Batutas vão dar concertos em Paris (O Imparcial, 28 de janeiro de 1922, segunda coluna).

Pelo que é nosso (A Noite, 28 de janeiro de 1922).

A Pátria saudou a viagem como uma das expressões mais legítimas do que é nosso (A Pátria, 28 de janeiro de 1922).

No dia 29 de janeiro de 1922, o grupo musical Oito Batutas embarcou no navio transatlântico Massília rumo à França (O Paiz, 29 de janeiro de 1922, terceira coluna).

Na coluna Aventuras de Motta e Chefe, publicação de uma charge satirizando a ida dos Oito Batutas à Europa (Jornal do Brasil, 29 de janeiro de 1922). 

Crítica à ida dos Batutas a Paris. “Não sei se a coisa é para rir ou para chorar. Seja como for, o boulevard vai se ocupar de nós. Não do Brasil de Arthur Napoleão, de Osvaldo Cruz, de Rui Barbosa, de Oliveira Lima, não do Brasil expoente, do Brasil elite, mas do Brasil pernóstico, negróide e ridículo e de que la chanson oportunamente tomará conta” (Diário de Pernambuco, 1º de fevereiro de 1922, segunda coluna).

Meu diário

O sr. Benjamin Costallat, que é um dos nossos mais finos observadores, estava o ano passado em Paris, quando a sua confreira patrícia, a sra. Regina Regis, lá residente, fez representar num teatro qualquer uma peça “genuinamente brasileira” por ela assim inculcada ao público e, como tal, por esse vivamente aplaudida. Nessa assistência, contava-se a flor de nossa colônia na Cidade Luz. E o cronista não pode deixar de manifestar a sua indignação em correspondência para um jornal do Rio diante de um negroide obsceno das bananeiras e dos sambas que a sra. Regis se lembrara de impingir como as únicas coisas típicas de sua pátria à frivolidade boulevardière.

Eu recordei-me imediatamente do protesto de Costallat ao ler um dias desses do telegrama (informando) que o dançarino Duque embarcara com destino à capital francesa levando em sua companhia a troupe dos Oito Batutas. Esses “artistas” já estiveram aqui se exibindo no Teatro Moderno. São oito, aliás, nove desempenados pardavascos, que tocam viola, pandeiro e outros instrumentos rudimentares, acompanhando uns aos outros em cantigas do horrível gênero Catulo Cearense e dançando com exagero as cores da nossa Tersícopere bárbara.

Pois bem! É essa gente que Luiz Duque, o famoso bailarino do Luna Park, um dos ilustres reveladores de “La Mattchiqhe” ao velho mundo, vai fazer exibir no seu cassino, onde passa cotidianamente a gama de blasbenismos e do rastacuerismo internacional. Os Oito Batutas vão ser, dentro de pouco, o número “suco” do Luna e, diante deles, o parisiense blasé se espantará, excitando a sua perdida sensualidade diante das sortes daqueles mulatos audazes que pretendem representar o Brasil”.

E não haver uma política inexorável que legalmente os fisgasse pelo cós e os retirasse de bordo com manopla rija, impedindo-lhes a partida no liner da Mala Real! Impunemente, porém, os Oito Batutas lá vão rumo a Paris mais o Duque, que tem olho fino, mais fino mesmo que os pés e sabem como treinar para que eles se mostrem de verdade uns cotubas no remelexo, nas cantilenas estropeadas de Catulo, na música lúbrica dos choros. Para consagrá-los e desmoralizarem cada vez mais o seu país, lá estão a espera com os seus lugares reservados, os mesmíssimos brasileiros que aplaudiram a peça “nacionalista” da sra. Regis. E depois ainda nos queixamos quando chega por aqui um maroto estrangeiro que, de volta a penates, se dá a divertida tarefa de contar das serpentes e da pretalhada que viu no Brasil (Jornal do Commercio, 1º de fevereiro de 1922 – de um cronista que se identificava como S).

Foi noticiado que tanto o Jornal do Commercio como o Diário de Pernambuco, do Recife, criticaram a ida dos Oito Batutas à Europa com comentários racistas (Jornal do Brasil, 2 de fevereiro de 1922, segunda coluna). 

Crítica à ida dos Oito Batutas para a Europa. Menção à música Ai, seu Mé, uma sátira em torno da alegada passividade de Artur Bernardes (1875 – 1955), eleito presidente da República, em março de 1922  (Correio da Manhã, 3 de fevereiro de 1922, sexta coluna). 

De Barbacena, Leon Feranda enviou uma carta em francês criticando a ida dos Oito Batutas a Paris como representantes do Brasil como havia sido noticiado pelo jornal A Noite. O jornal O Paiz responde às críticas (O Paiz, 4 de fevereiro de 1922, terceira coluna).

Na coluna “Ecos e Novidades”, comentário sobre a ida dos Batutas a Paris e crítica ao esnobismo ignorante dos que nunca atentaram para as belezas da música popular (A Noite, 4 de fevereiro de 1922, primeira coluna).

Crítica ao esnobismo em torno da ida dos Oito Batutas a Paris (A Província, 15 de fevereiro de 1922, terceira coluna).

Notícia sobre a estreia, com sucesso, dos Batutas, em Paris (Jornal do Brasil, 17 de fevereiro de 1922, sexta coluna; Gazeta de Notícias, 17 de fevereiro de 1922, sétima coluna).

Publicação do artigo Os “Batutas” em Paris, de José Fortunato, em torno da polêmica da ida dos Batutas a Paris (A Maçã, 18 de fevereiro de 1922).

O préstito do Club dos Democráticos durante o carnaval contou com um carro alegórico de crítica chamado Oito Batutas, onde eram tocados os tangos que mais agradaram ao público dos teatros cariocas (Correio da Manhã, 28 de fevereiro de 1922, quarta coluna; Jornal do Brasil, 4 de março de 1922, última coluna; O Jornal, 28 de fevereiro de 1922, quinta coluna).

Notícia sobre o sucesso dos Oito Batutas no pequeno teatro de Montmartre, Shéhérazade, sob a direção de Duque, em Paris (O Paiz, 9 de março de 1922, quarta coluna; O Jornal, 10 de março de 1922, última coluna).

Publicação do artigo A Música Brasileira, de Chrysantheme, Maria Cecília Bandeira de Melo Vasconcelos (1870 – 1948), elogiando a turnê dos Oito Batutas, em Paris (Correio Paulistano, 29 de março de 1922, primeira coluna).

Matéria celebrando o sucesso dos Batutas em Paris (Careta, 1º de abril de 1922).

Quando o samba fala francês… Publicação da letra do samba Les Batutas, composto por Pixinguinha (Gazeta de Notícias, 14 de abril de 1922, quarta coluna).

Uma carta enviada pelo jornalista A. Floresta de Miranda de Paris defendeu e deu notícias das apresentações dos Batutas em Paris (Jornal do Recife, 11 de abril de 1922, primeira coluna).

Carta do jornalista A. Floresta de Miranda em defesa dos Batutas (Jornal do Recife, 11 de abril de 1922, primeira coluna). 

Os “Oito Batutas” representam a música vulgar carioca’(A Noite, 19 de abril de 1922, quinta coluna).

Crítica sobre a temporada dos Batutas em Paris. Estariam fazendo sucesso.  …está dando em resultado o cruzamento harmônico e melódico do nosso do samba com o cancan parisiense (Jornal do Brasil, 22 de abril de 1922, sexta coluna).

Em um artigo sobre a universalidade da linguagem universal, o autor, Augusto de Lima (1859 – 1934), membro da Academia Brasileira de Letras, cita os Oito Batutas (O Imparcial, 16 de junho de 1922, quarta coluna).

Após cerca de 6 meses, em 14 de agosto de 1922, os Batutas voltaram ao Rio de Janeiro, a bordo do Lutetia. O paquete partiu de Bordeux, em 1º de agosto, e fez escalas em Boulogne-sur-mer, Vigo e Lisboa (A Noite1º de agosto, primeira coluna, e 14 de agosto de 1922; Diário de Pernambuco, 2 de agosto de 1922, quarta colunaO Paiz, 15 de agosto de 1922, página 3 e página 4Jornal do Brasil, 15 de agosto, quinta colunaGazeta de Notícias, 15 de agosto de 1922, última coluna).

Pixinguinha declarou que não havia animosidade contra os homens de cor na França. Mencionou a presença de músicos de jazz em Paris e disse que os Batutas voltaram para o Brasil para tomar parte nas comemorações pelo centenário da Independência do Brasil (O Imparcial, 15 de agosto de 1922).

O dançarino Duque, Antônio Lopes de Amorim Diniz (1884-1953), que também havia retornado de Paris, fez uma visita à redação da Gazeta de Notícias e revelou que pretendia abrir um curso de dança no Rio de Janeiro. Estava acompanhado de Donga (1891 – 1974) e de China (1888 – 1926). Foi noticiado que, em 17 de agosto, os Batutas apresentariam um repertório de músicas brasileiras, no Jockey Club em uma festa oferecida ao presidente do clube, Lineu de Paula Machado. No dia 6 de setembro, se apresentariam no Fluminense Futebol Clube no gênero jazz band (Gazeta de Notícias, 16 de agosto de 1922, segunda coluna).

Na coluna “Artes e Artistas” foi noticiado que, a convite da sra. Rasimi (1874 – 1954), diretora da Companhia do Ba-ta-clan, os Oitos Batutas haviam apresentado no Theatro Lyrico o repertório dos shows que haviam realizado em Paris. “Não há dúvida nenhuma: mais uma vez os versos do trovador popular se justificam… ”A Europa continua a curvar-se ante o Brasil” (O Paiz, 23 de agosto de 1922, quinta coluna; e 27 de agosto, penúltima coluna, de 1922; Correio da Manhã, 24 de agosto de 1922, segunda coluna; Gazeta de Notícias, 27 de agosto de 1922,segunda coluna).

A senhora Rasimi ofereceu um almoço, na Ilha d´Água, a vários escritores, artistas e jornalistas brasileiros com uma apresentação dos Oito Batutas (O Paiz, 24 de agosto de 1922, primeira coluna).

Propaganda e notícia da apresentação dos Batutas no Theatro Lyrico, no espetáculo de revista V´la Paris (O Paiz, 26 de agosto de 1922 e Correio da Manhã, 26 de agosto de 1922; O Jornal, 26 de agosto de 1922, terceira coluna).

No Palace Hotel, a esposa do adido naval dos Estados Unidos, a sra. Herbert Sparrow, ofereceu uma recepção com a apresentação dos Oito Batutas (O Paiz, 2 de setembro de 1922, terceira coluna).

Foi noticiado que os Oito Batutas trouxeram de Paris novas músicas: Dádiva d´ Amor, de Donga (1891 – 1974), e Batutas, samba de Pixinguinha (A Noite, 5 de setembro de 1922, última coluna).

Segundo artigo do poeta e compositor Hermes Fontes (1888 – 1930): “Já cá estão os Oito Batutas, de volta de Paris, onde estragaram o sentimento brasileiro e a verdadeira poesia dos sertões” (A Illustração Brasileira (FRA), 7 de setembro de 1922).

Apresentação dos Oito Batutas na inauguração do Hotel Balneário Sete de Setembro, construído na Praia de Botafogo para as comemorações do centenário da independência do Brasil (O Paiz, 7 de setembro de 1922, quarta coluna; O Imparcial, 7 de setembro, penúltima coluna).

Propaganda da estreia dos Oito Batutas no Cine-Theatro Rialto (O Paiz, 10 de setembro e 12 de setembro de 1922; Correio da Manhã, 10 de setembro de 1922; O Imparcial, 12 de setembro de 1922, quarta coluna).

Os Oito Batutas foram contratados pelo prefeito do Rio de Janeiro, Carlos Sampaio (1861 – 1930), para tocarem na festa, no alto do Corcovado, oferecida às delegações de Buenos Aires e de Montevidéu, presentes na cidade devido à comemoração do centenário da Independência do Brasil. “Os Oito Batutas empurraram um maxixe eletrizante” (Correio da Manhã, 16 de setembro, última coluna; O Combate, 18 de setembro de 1922, primeira coluna).

Participaram, no Teatro Municipal, de uma homenagem ao presidente de Portugal, Antônio José de Almeida. O ator Leopoldo Froes (1882 – 1932) e os músicos Catulo da Paixão Cearense (1863 – 1946) e Mario Pinheiro (1883 – 1923) também participaram do evento (Jornal do Commercio, 18 de setembro de 1922, última coluna).

No Country Club, apresentação dos Oito Batutas e da jazz band Harry Kosarin´s (ou Kosarini) em um chá dançante em homenagem a estudantes sul-americanos (O Paiz, 21 de setembro de 1922, primeira coluna; O Imparcial, 21 de setembro de 1922, penúltima coluna).

A Sociedade Brasileira de Autores Teatrais havia aberto um inquérito contra os Oito Batutas devido a acusações feitas a eles por J. B. da Silva, o Sinhô (1888- 1930), e Francisco José Freire Junior (1881 – 1956). Segundo os compositores, os Oito Batutas haviam, sem autorização, editado, em Paris, trabalhos musicais da autoria deles. O relator foi Cardoso de Menezes, que pediu que o professor Duque fosse ouvido (O Imparcial, 21 de setembro de 1922, segunda coluna; Jornal do Commercio, 6 de outubro de 1922, quinta coluna; Jornal do Commercio, 10 de outubro de 1922, segunda coluna).

Os Oito Batutas tocaram na festa oferecida pelo Círculo da Imprensa para os jornalistas estrangeiros, presentes na cidade devido à comemoração do centenário da Independência do Brasil (Correio da Manhã, 2 de outubro de 1922, quarta coluna).

A Companhia Abigail Maia estava sendo esperada, com os Oito Batutas, em São Paulo, onde fariam apresentações no Teatro da República (O Combate, 2 de outubro de 1922, segunda coluna3 de outubro, primeira coluna).

No Clara Hotel, apresentação dos Oito Batutas com o delicioso exotismo de seus fox-trots parisienses (O Imparcial, 7 de outubro de 1922, terceira coluna).

A valsa Diza, de autoria de China (1888 – 1926), irmão de Pixinguinha (1897 – 1973), e executada pelos Oito Batutas e pelas orquestras Cícero, Romeu Silva e Andreosi, foi editada pela Casa Viúva Guerreiro (O Jornal, 1º de novembro de 1922, terceira coluna).

No Palácio das Festas, na Exposição do Centenário da Independência do Brasil, os Oito Batutas e uma banda militar foram as atrações musicais do baile promovido pela União dos Empregados no Comércio. O serviço de buffet foi do restaurante Falconi (A Noite, 8 de novembro de 1922, quarta coluna; O Paiz, 9 de novembro de 1922, segunda coluna).

Tocaram na sala de espetáculos do Teatro Carlos Gomes, onde se apresentava o vaudeville Surpresas da exposição, do dramaturgo Gastão Tojeiro (1880 – 1965) (Jornal do Brasil, 28 de novembro de 1922, quinta coluna); O Imparcial, 28 de novembro de 1922, segunda coluna).

Os Oito Batutas embarcaram no navio Duque d´Osta para uma temporada no Empire, em Buenos Aires, sob o comando do empresário José Segreto (O Paiz, 2 de dezembro de 1922, quarta coluna; O Jornal, 3 de dezembro de 1922, quinta coluna; Correio Paulistano, 2 de dezembro de 1922, quinta coluna 1922, quinta coluna; Correio Paulistano, 2 de dezembro de 1922, quinta coluna).

 

Uma brevíssima história dos Oito Batutas e Pixinguinha

 

“Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas, se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha”

Ary Vasconcellos, crítico e historiador

 

 

“É o melhor ser humano que conheço. E olha que o que eu conheço de gente não é fácil!”

Vinícius de Moraes sobre Pixinguinha

 

O elegante Cine Palais foi inaugurado, na avenida Rio Branco, antiga avenida Central, no Rio de Janeiro, em 16 de julho de 1914. Ficava no edifício onde anteriormente localizava-se o Cine Pathé (Correio da Manhã, 12 de julho e 15 de julho de 1914). Seu proprietário era o coronel Gustavo de Mattos (Revista da Semana17 de julho  e 24 de julho de 1915).

 

 

Apresentaram-se pela primeira vez, em abril de 1919, na sala de espera do Cine Palais, os Oito Batutas, formado por Pixinguinha (flauta), Donga (violão), China (voz e violão), Nelson Alves (cavaquinho), os irmãos Raul (violão) e Jacob Palmieri (pandeiro); José Alves de Lima, o Zezé (bandolim e ganzá) e Luís de Oliveira (bandola e reco-reco). Todos os livros consultados pela pesquisa da Brasiliana Fotográfica apontam o dia 7 de abril de 1919 como o da estreia do grupo no Cine Palais, mas há registros nos jornais da época de apresentações anteriores a essa data (O Paiz2 de abril, penúltima coluna; e 4 de abril, terceira coluna, de 1919; Manchete, 24 de setembro de 1966).

Pixiguinha já havia tocado flauta, em meados da década de 1910, na sala de projeção do Cine Palais, acompanhando os filmes mudos. 

 

 

A ideia da criação do conjunto musical, que se tornaria lendário na história da música popular brasileira, foi de Isaac Frankel, gerente do cinema, como uma estratégia para resgatar o público que havia se afastado dos cinemas devido à violenta epidemia de gripe espanhola, em 1918. Frankel havia ouvido, no carnaval de 1919, o Grupo Caxangá, do qual faziam parte, dentre mais de 15 músicos, Pixinguinha (1897 – 1973), Donga (1891 – 1974) e João Pernambuco (1883 – 1947), no coreto do Largo da Carioca, ao lado da sede da Sociedade Tenentes do Diabo. O Caxangá era, na década de 1910, uma das principais atrações do carnaval do Rio de Janeiro.

 

Grupo Caxangá no carnaval de 1915 / Pixinguinha, vida e Obra

Grupo Caxangá no carnaval de 1914 / Pixinguinha, Vida e Obra

 

Em julho de 1919, os Oito Batutas também tocaram nas salas de espera dos teatros Carlos Gomes e São José, ambos do empresário e um dos pioneiros do cinema no Brasil, Paschoal Segreto (1868 – 1920) (O Paiz, 23 de julho de 1919). Em outubro, João Pernambuco integrava o conjunto, do qual o bandolinista José Alves de Lima havia se desligado.

 

 

As apresentações do grupo na sala de espera do Cine Palais, frequentado pela elite carioca, onde já haviam tocado os pianistas Oswaldo Cardoso de Menezes (1893 – 1935) e Luciano Gallet (1893 – 1931), fizeram muito sucesso e logo o conjunto ganhou admiradores como o músico Ernesto Nazareth (1863 – 1934), que tocava na sala de espera do concorrente Cine Odeon; o político Ruy Barbosa (1849 – 1923) e o empresário Arnaldo Guinle (1884 – 1963) que, como já mencionado, patrocinou uma turnê do grupo por estados do sudeste e do nordeste do Brasil, entre 1919 e 1920; e, em 1922, para Paris.

 

 

Estava programada uma apresentação dos 8 Batutas para os reis da Bélgica, que visitaram o Brasil entre 19 de setembro e 16 de outubro de 1920. Aconteceria durante o almoço que seria oferecido a eles pelo então prefeito do Rio de Janeiro, Carlos Sampaio, na Mesa do Imperador. Porém uma chuva fez com que o evento fosse cancelado (O Paiz, 24 de setembro de 1920, segunda colunaO Paiz, 25 de setembro de 1920).

Em 1º de dezembro de 1922, após a turnê de Paris, o conjunto seguiu em nova viagem internacional, desta vez para a Argentina e foram mesmo Oito Batutas: Pixinguinha (flauta e saxofone), Donga (violão e banjo), J. Tomás (bateria), China (violão e voz), Nelson Alves (cavaquinho e banjo), J. Ribas (piano), Josué de Barros (violão) e José Alves (bandolim e ganzá). Apresentaram-se em Buenos Aires, no Teatro Empire; em Rosário, La Plata e Chivilcoy (O Paiz, 2 de dezembro de 1922, quarta coluna). A temporada foi um sucesso e terminou em abril de 1923 (Correio da Manhã, 6 de abril de 1923, sexta coluna).

Em 1927, os Batutas começaram a tocar no Cinema Odeon e fizeram uma turnê por Santa Catarina (Correio da Manhã, 25 de agosto, segunda coluna). Também se apresentaram em teatros e no espetáculo Noites de Montmartre, no Assyrio (Correio da Manhã, 14 de julho de 1927), onde, de maio de 1928 a 1931, foram atração fixa.

Pixinguinha, Donga (1891 – 1974) e João da Baiana (1887 – 1974) criaram o Grupo da Guarda Velha, que substituiu os Batutas e foram um grande sucesso no carnaval de 1932. Os três músicos foram frequentadores da Casa de Tia Ciata (1854 – 1924), que ficava na Pequena África no Brasil, expressão baseada numa afirmação do cantor e pintor Heitor dos Prazeres (1898 – 1966) se referindo à área que começava no Porto do Rio de Janeiro e abrangia os atuais bairros da Saúde, Estácio, Santo Cristo, Gamboa e Cidade Nova, até a Praça Onze de Junho, que foi totalmente remodelada nos anos 1940 para a abertura da avenida Presidente Vargas. Foi  lá que, a partir da década de 1870, a comunidade baiana se estabeleceu no Rio de Janeiro, fazendo da área um local de concentração de diversas manifestações da cultura afro-brasileira.

 

 

João da Baiana era filho de Prisciliana Maria Constança, e Donga, filho de Amélia Silvana de Araújo, tias baianas da Pequena África. Eras irmãs-de-santo da lendária Tia Ciata (1854 – 1924), Hilária Batista de Almeida, no terreiro de João Alabá, um dos principais babalorixás do candomblé  no Rio de Janeiro. Havia também as tias Bebiana, Carmen e Mônica, dentre outras, que fizeram de suas casas pontos de referência e de convívio, que garantiram a manutenção das tradições africanas na cidade. Nessas casas eram cultuadas a música e a religiosidade afro-brasileira. As casas de Tia Prisciliana e, principalmente, a de Tia Ciata foram espaços fundamentais da música popular carioca.

 

O GLOBO, 26 de maio de 2019

Região da Pequena África / O GLOBO, 26 de maio de 2019

 

Entre a última década do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a comunidade afro-descendente se reunia nessa região para praticar religiões de matriz africana e cantar sambas. Foi na casa de Tia Ciata, onde havia um terreiro de candomblé clandestino e onde os bambas do samba se encontravam, que o primeiro samba, registrado e gravado como tal, Pelo telefone, foi composto por Donga e Mauro de Almeida (1882 – 1956), em 1916. Foi lançado pela Odeon, em 1917. Existiu uma polêmica em torno de sua autoria: foi registrado por Donga, em 27 de novembro de 1916, mas teria sido uma criação coletiva. Houve uma troca de petardos musicais entre Sinhô (1888 – 1930), que estaria presente na casa de Tia Ciata quando o samba foi composto e a turma de Donga, dentre eles João da Baiana e Pixinguinha. Outra polêmica envolve o fato de ter sido mesmo o primeiro samba ou se foi o primeiro samba a fazer sucesso, já que alguns autores alegam que antes foram compostos os sambas Em casa da baiana, de 1911; e A viola está magoada, de 1914.

 

 

Foi também na Pequena África que a Deixa Falar, considerada a primeira escola de samba, foi fundada, em 12 de agosto de 1928, pelos sambistas Bide, Mano Edgar, Brancura, Baiaco, dentre outros, além de Ismael Silva, que reinvidicava a expressão escola de samba. Eles se reuniam no Bar Apolo ou no Café Compadre, em frente à Escola Normal, no Largo do Estácio. Existiu até 1932, quando se apresentou como rancho carnavalesco.

 

Andrea C. T. Wanderley

Editora e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

A Brasiliana Fotográfica agradece a colaboração de Bia Paes Leme, coordenadora de Música do Instituto Moreira Salles, e a de Fernando Krieger e Isadora Cirne, assistentes da Coordenadoria de Música do Instituto Moreira Salles, para a publicação desse artigo.

Para mais informações sobre Pixinguinha e os Batutas, inclusive para acessar gravações e mais fotografias do conjunto, acesse o site Pixinguinha, do Instituto Moreira Salles.

 

Abotoaduras que pertenceram a Pixinguinha. Arquivo Pixinguinha / Acervo IMS

Abotoaduras que pertenceram a Pixinguinha/ Arquivo Pixinguinha / Acervo IMS

 

 

Fontes:

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Blog Batucada Fantástica

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Site Musica Brasiliensis -Crônicas bovinas

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TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]

ULHOA, Marta Tupinambá de; AZEVEDO, Claudia; TROTTA, Felipe. Made in Brazil. Studies in Popular Music. New York : Routledge, 2015.

 

Links para os artigos já publicados da Série 1922 – Hoje, há 100 anos

Série 1922 – Hoje, há 100 anos II- A Semana de Arte Moderna, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, publicado em 13 de fevereiro de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos III – A eleição de Artur Bernardes e a derrota de Nilo Peçanha, de autoria de Andrea C.T. Wanderley, publicado em 1º de março de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos IV – A primeira travessia aérea do Atlântico Sul, realizada pelos aeronautas portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicada em 17 de junho de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos V – A Revolta do Forte de Copacabana, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicada em 5 de julho de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos VI e série Feministas, graças a Deus XI – A fundação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 9 de agosto de 2022, na Brasiliana Fotográfica

Série 1922 – Hoje, há 100 anos VII – A morte de Gastão de Orleáns, o conde d´Eu (Neuilly-sur-Seine, 28/04/1842 – Oceano Atlântico 28/08/1922), de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 28 de agosto de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos VIII – A abertura da Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil e o centenário da primeira grande transmissão pública de rádio no país, de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 7 de setembro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos IX – O centenário do Museu Histórico Nacional, de autoria de Maria Isabel Lenzi, historiadora do Musseu Histórico Nacional, publicado em 12 de outubro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos X –  A morte do escritor Lima Barreto (1881 – 1922), de autoria de Andrea C. T. Wanderley, publicado em 1º denovembro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Série 1922 – Hoje, há 100 anos XI e série Feministas, graças a Deus XII 1ª Conferência pelo Progresso Feminino e o “bom” feminismo, de autoria de Maria Elizabeth Brêa Monteiro, antropóloga do Arquivo Nacional, publicado em 19 de dezembro de 2022, na Brasiliana Fotográfica.

Os “Instantâneos Cruéis” de Monteiro Lobato

O contato de Monteiro Lobato (1882 – 1948) com as pesquisas realizadas por cientistas de Manguinhos em suas cinco expedições científicas pelo Brasil, no início do século XX, em especial a viagem de cerca de sete meses feita pelos sanitaristas Belisário Penna (1868 – 1939) e Arthur Neiva (1885 – 1945), em 1912, entre o norte da Bahia, o sudeste de Pernambuco, o sul do Piauí e Goiás de norte a sul, impactaram a obra do escritor.

 

 

Fotografias produzidas por José Teixeira, fotógrafo da expedição, batizadas por Lobato de instantâneos cruéis em seu artigo O problema do saneamento – O início da ação (O Estado de São Paulo, 12 de maio de 1918, página 3, terceira coluna (1)), que retratavam a fome, a miséria e as doenças do povo brasileiro, faziam parte dessas pesquisas, que influenciaram a mudança da concepção de um de seus famosos personagens, o Jeca Tatu, e fez com que Lobato se engajasse numa campanha pelo saneamento do país: O Jeca não é assim: está assim – epígrafe de seu livro Problema Vital, publicado em fins de 1918, reunindo a série de artigos que havia escrito para o jornal O Estado de São Paulo no referido ano. Redefiniu o perfil do Jeca Tatu. Se em seus artigos de 1914 – Velha Praga e Urupês – o Jeca era definido a partir de sua natureza racial ou genética, agora eram as péssimas condições de saúde e higiene as causadoras da característica de indolência atribuída ao personagem.

Seu diagnóstico do Brasil havia se modificado, o saneamento das áreas rurais poderia transformar a realidade. A mudança de seu pensamento ancorava-se em sua crença otimista em relação à ciência. O pesquisador Ricardo Augusto dos Santos, da Fundação Oswaldo Cruz, uma das instituições parceiras da Brasiliana Fotográfica conta essa história no artigo Os Instantâneos Cruéis de Monteiro Lobato.

 

 

As fotografias e negativos remanescentes das cinco expedições realizadas entre 1911 e 1913 pelo Insituto Oswaldo Cruz, com aproximadamente 1700 itens, foram produzidos por câmeras grandes, pesadas, que utilizavam negativos de gelatina seca sobre base de vidro no formato 13 x 18 centímetros. Sobre os fotógrafos conhece-se apenas dois, o já citado José Teixeira, que acompanhou a expedição Penna-Neiva, e João Stamato (1886-1951), cinegrafista do Rio de Janeiro´, na década de 1910, que documentou a expedição aos Vales dos Rios São Francisco e Tocantins, em 1911.

 

 

 

Os Instantâneos Cruéis de Monteiro Lobato

 Ricardo Augusto dos Santos*

 

 

Foi em 1987 que tomei conhecimento da obra adulta de Monteiro Lobato (1882-1948). Naquele ano, a Casa de Oswaldo Cruz contratou-me para trabalhar no projeto de organização de fontes e publicação do álbum fotográfico A Ciência a Caminho da Roça.

Que fontes eram essas? Tratava-se de um conjunto de imagens realizadas durante cinco expedições científicas efetuadas entre 1911 e 1913 pelo Instituto Oswaldo Cruz. Essas viagens produziram relatórios, registros e fotografias, que descreviam as condições de vida nas regiões visitadas. Era esse material que uma equipe organizava, pesquisava e preparava a edição do texto.

Depois das primeiras reuniões com o grupo responsável pela produção do volume, atraído em estudar a ideologia nacionalista, encontrei o livro Problema Vital (2)de Lobato. Publicado, em 1918, essa obra reúne 14 artigos veiculados no jornal O Estado de São Paulo daquele ano. Nestes textos, Lobato comentava sobre os problemas sociais do Brasil. Em determinado trecho, o autor falava de modo enfático sobre as imagens produzidas pelo fotógrafo José Teixeira durante uma dessas expedições científicas, a viagem liderada por Belisário Penna e Arthur Neiva. Segundo Lobato, as fotografias eram instantâneos cruéis que possuiriam força para alterar o diagnóstico do país.

 

Acessando o link para as fotografias de autoria de José Teixeira disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

 

Mas, que cinco viagens foram essas? Entre setembro de 1911 e fevereiro de 1912, Astrogildo Machado (1885 – 1945) e Antônio Martins (18?-19?), respectivamente pesquisador e farmacêutico do Instituto Oswaldo Cruz, percorreram os vales do São Francisco e do Tocantins com os técnicos da Estrada de Ferro Central do Brasil, responsáveis por estudos para um prolongamento que, a partir de Pirapora, deveria alcançar a cidade de Belém, no Pará.

 

 

A serviço da Superintendência da Defesa da Borracha, Carlos Chagas  (1878-1934), Antonio Pacheco Leão (1872 – 1931) e João Pedroso Barreto de Albuquerque (1869 – 1936) inspecionaram parte da bacia amazônica, no período de outubro de 1912 a março de 1913.

 

 

Entre março a outubro de 1912, a serviço da Inspetoria das Obras contra a Seca, três expedições exploraram o Nordeste e o Centro-Oeste do Brasil. Para o Ceará e o norte do Piauí, dirigiram-se João Pedro de Albuquerque (1874 – 1934) e José Gomes de Faria (18? – 1962). Adolfo Lutz (1855 – 1940) e Astrogildo Machado desceram o Rio São Francisco de Pirapora até Juazeiro, visitando alguns de seus afluentes. Das cinco expedições científicas deste período, a viagem de Arthur Neiva e Belisário Penna foi a mais longa, percorrendo em trens, cavalos e burros, quatro mil quilômetros entre o norte da Bahia, o sudeste de Pernambuco, o sul do Piauí e Goiás de norte a sul.

Em 1916, o diário da jornada foi publicado no periódico Memórias do Instituto Oswaldo Cruz com as fotos obtidas durante o trajeto. Este documento registrava em detalhes a miséria em que viviam as populações. Em um dos textos reunidos em Problema Vital, Lobato refere-se às fotos da expedição Penna-Neiva, ao falar de idéias capazes de mudar a realidade:

“A idéia do saneamento é uma. Bastou que a ciência experimental, após a série de instantâneos cruéis que o diário de viagem de Artur Neiva e Belisário Penna lhe pôs diante dos olhos, propalasse a opinião do microscópio, e esta fornecesse à parasitologia elementos para definitivas conclusões, bastou isso para que o problema brasileiro se visse, pela primeira vez, enfocado sob um feixe de luz rutilante. E instantaneamente vimo-la evoluir para o terreno da aplicação prática. E a idéia-força caminha avassaladoramente. Avassaladoramente e consoladora, porque o nosso dilema é este: ou doença ou incapacidade racial. É preferível optarmos pela doença.”

Problema Vital. Monteiro Lobato, 1918

 

As expedições científicas deixaram marcas profundas no pensamento de seus participantes e, posteriormente, influenciaram os intelectuais que tiveram acesso aos relatórios e às fotografias. Para Lobato, o diário da viagem Penna-Neiva foi um documento revelador dos reais problemas do país. Inclusive, a partir do texto repleto das imagens cruéis, Lobato e um dos personagens criados por ele, o Jeca Tatu, sofreriam uma metamorfose.

O contato de Lobato com o diário provocou uma mudança de perspectiva do escritor a respeito do camponês. Quando surgiu o personagem, em 1914, em pequeno artigo jornalístico, o Jeca Tatu era um retrato pessimista do camponês do Vale do Paraíba. Naquela conjuntura, Lobato estava alinhado com o pensamento dominante na passagem do século XIX para o XX, adotando as teorias cientificistas para refletir a nacionalidade brasileira. Entre os primeiros anos do século, o determinismo biológico era hegemônico no Brasil.

Em 1918, entretanto, Lobato assumiria outro ponto de vista. Certamente, um dos fatores que propiciaram a mudança está no encontro de Lobato com o diário e, especialmente, com os Instantâneos Cruéis. Seu diagnóstico do Brasil foi se alterando. Doravante, o saneamento das áreas rurais poderia transformar a realidade. Como o personagem Jeca se transformou?

Nascido como alegoria do trabalhador rural, em artigo escrito em 1914, Jeca Tatu tornou-se sinônimo de homem do campo. Inclusive, através de sua narrativa, uma empresa de produtos farmacêuticos difundiu um tônico, propagando os seus valores terapêuticos, chegando a circular em milhões de exemplares do folheto Jeca Tatuzinho distribuído colado ao “fortificante”. A presença do símbolo do homem da roça em campanhas de educação higiênica, especialmente as direcionadas ao controle das endemias rurais, ajudou a popularizar os cuidados com a higiene individual e a saúde pública nas primeiras décadas do século.

 

 

Caricatura do caipira brasileiro, o Jeca é um dos mais conhecidos personagens de nossa cultura. De caboclo preguiçoso e indolente à vítima da doença, a trajetória do matuto desenvolvido por Lobato está relacionada ao papel conferido às políticas de saúde pública e educação para o desenvolvimento econômico do país. Trata-se de uma das representações sociais da identidade nacional, em que se articula o retrato doente da sociedade, especialmente dos trabalhadores rurais, à regeneração do povo por meio da ação do Estado.

Portanto, a série de artigos compilados em livro (1918) evidenciam uma mudança de perspectiva do caboclo brasileiro. Naquela altura de sua trajetória, Lobato estava influenciado pelo conjunto de teorias científicas surgidas na Europa. Criado como símbolo do camponês, Jeca Tatu estava ancorado no racismo científico ainda dominante. Para as idéias cientificistas, o clima, a localização geográfica e a raça determinavam a evolução e hierarquia das sociedades humanas.

Lobato denunciava uma corrente de interpretação ufanista dos elementos culturais nacionais, atribuindo ao Jeca, espécie degenerada em sua origem mestiça indígena e portuguesa, e adaptada ao ambiente natural, a responsabilidade pelos problemas do universo rural. Esse primeiro Jeca era incapaz de participação no trabalho do mundo moderno.

Contudo, o enfoque mudaria. Surgiria um segundo Jeca. E o diagnóstico seria outro. Se o determinismo biológico representava um problema grave, uma herança nociva, o saneamento poderia transformar cientificamente a realidade. No livro Problema Vital, encontramos um Lobato entusiasta da microbiologia e parasitologia.

A primeira aparição do Jeca data de novembro de 1914, no texto Velha Praga (3), no qual Lobato se insurgia contra as queimadas de roça e descrevia o modo de vida dos camponeses. Nesta obra, aparecem os nomes de Manoel PerobaChico Marimbondo e Jeca Tatu.

Porém, segue-se um novo artigo com o título de Urupês (4), onde Lobato fornece um panorama do sertanejo e seu modo de vida, em oposição a uma literatura que exaltava romanticamente o homem rural como um guerreiro imbatível. Para Lobato, então fazendeiro no interior paulista, a explicação para a apatia e a incapacidade produtiva do Jeca encontrava-se nas facilidades de sobrevivência proporcionadas pela mandioca, milho e cana: 

“Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade! Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade ambiente.”

Urupês, Lobato(1914)

 

 

Em 1918, Lobato lançou o livro Urupês (5), reunindo contos, incluindo os artigos Velha Praga e Urupês. Nestas páginas militantes, Lobato critica o caboclo modorrento e o ufanismo que identificava o Brasil como um paraíso. No entanto, Lobato estava progressivamente participando da campanha pelo saneamento das áreas rurais. Ele estava em contato com os médicos Arthur Neiva, Belisário Penna, Renato Kehl e demais membros do movimento sanitarista. Assim, nascia um novo Jeca: o Jeca dos artigos reunidos em Problema Vital.

Esse segundo Jeca padecia das mesmas enfermidades, mas após entrar em contato com a ciência médica, curava-se das moléstias que o levavam a ser apático; tornava-se trabalhador, enriquecia e transformava-se em exemplo para os vizinhos. Esta narrativa foi publicada com o título de Jeca Tatu. A Ressurreição. Conhecida como Jeca Tatuzinho, chegou a milhões de exemplares através do Almanaque de Produtos Farmacêuticos Fontoura.

Mas, se a personagem mudava, o seu criador também mudaria. Em meados dos anos 40, surgiria um terceiro Jeca: o Zé Brasil. Este Jeca não era preguiçoso. Nem doente, mas um trabalhador explorado. A figura do caipira nacional aparecia pela terceira vez na literatura lobatiana. Neste momento, superando a intolerância em relação ao primeiro Jeca (Velha Praga e Urupês) e o paternalismo presente em relação ao segundo, o Jeca Tatuzinho. Como entendermos a mudança do primeiro para o segundo Jeca? Algumas respostas podem ser buscadas nos já citados artigos publicados em O Estado de S. Paulo e reunidos no Problema Vital, por decisão da Sociedade de Eugenia de São Paulo e da Liga Pró-Saneamento do Brasil.

Se em Urupês e Velha Praga (1914) Lobato atribuía preponderância às teses raciais e climáticas para a pobreza, chegando a culpar o trabalhador do campo por sua condição, nos artigos redigidos quatro anos mais tarde, refletia sobre a questão nacional do saneamento. É através de uma explicação científica que Lobato, preocupado com a reprodução da força de trabalho improdutiva, mudaria a sua concepção do caipira. A ineficiência do Jeca não era devido à inferioridade racial, mas sim um problema sanitário. A epígrafe do livro Problema Vital traduz a ideia: O Jeca não é assim, está assim. O caboclo é pobre porque é doente e assim não produz. A mudança de concepção passava pela crença otimista de Lobato na ciência.

De raça e clima, o problema que inviabilizava a construção da nação deslocou-se para a doença que passou a ser considerada a origem de todos os males. Jeca permanecia incapaz, porém encontrava-se vitimado pelas doenças. No futuro, a ciência o absolveria da sua incapacidade. A educação o capacitaria para a vida e trabalho. A parasitologia, a bacteriologia e a microbiologia libertariam seu corpo dos agentes patogênicos. A higiene o protegeria dos micro-organismos.

Lobato continuava a atacar a visão ufanista e romantizada do campo. Todavia, chamando a atenção para a realidade dos sertões e associando a verdadeira realidade com as fotos. Lobato usaria com frequência as representações metafóricas das imagens fotográficas.

Contemporâneo do processo de modernização que pretendia transformar a sociedade brasileira nas primeiras décadas do século passado, Lobato lançou um olhar crítico sobre sua época. Constantemente, demonstrava crença no progresso e na ciência como verdade única e totalizante. As fotografias veiculadas no relatório causariam um grande impacto, ao revelarem um Brasil doente e pobre que vivia à margem da civilização que as cidades do litoral, em particular a capital da República, supunham personificar. Embora quase todas as fotos sejam fortes documentos das condições e modos de vidas das populações camponesas, até hoje, as imagens de doentes causam grande impacto.

 

 

“Nós, se fôramos poetas, escreveríamos um poema trágico com a descrição das misérias, das desgraças dos nossos infelizes sertanejos abandonados. A poesia das paisagens e dos panoramas ficaria apagada pela tragédia, pela desolação e pela miséria dos infelizes habitantes sertanejos, nossos patrícios. Aos nossos filhos, que aprendem nas escolas que a vida simples de nossos sertões é cheia de poesia e de encantos, pela saúde de seus habitantes, pela fartura do solo e generosidade da natureza, ficariam sabendo que nessas regiões se desdobra mais um quadro infernal, que só poderia ser mais magistralmente descrito pelo DANTE imortal.”

Belisário Penna e Arthur Neiva.

Viagem científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás, 1916.

 

 

 

Capa do Folheto

Capa do folheto que acompanhava o Biotônico Fontoura

 

 

*Ricardo Augusto dos Santos é Pesquisador Titular da Fundação Oswaldo Cruz

 

Indicação Bibliográfica:

 

DOS SANTOS, Ricardo Augusto. Lobato, os Jecas e a Questão Racial no Pensamento Social Brasileiro. Revista Achegas. Número 7, maio de 2003. http://www.achegas.net/numero/sete/ricardo_santos.htm

DOS SANTOS, Ricardo Augusto. O Plano de Educação Higiênica de Belisário Penna: 1900-1930. Dynamis. 2012, vol. 32, n. 1, pp. 45-68.https://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0211-95362012000100003&lng=es&nrm=iso

THIELEN,Eduardo Vilela; ALVES, Fernando Antonio Pires; BENCHIMOL, Jaime Larry;ALBUQUERQUE, Marli Brito de; DOS SANTOS, Ricardo Augusto; WELTMAN, Wanda Latmann. A ciência a caminho da roça: imagens das expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz ao interior do Brasil entre 1911 e 1913.  3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018.

 

Notas da editora:

(1) - Artigo O problema do saneamento – O início da ação, publicado no O Estado de São Paulo de 12 de maio de 1918, quando Monteiro Lobato usa a exxpressão instantâneos cruéis.

 

saneamento1

saneamento2

saneamento3

 

(2) – Artigo Problema Vital, de Lima Barreto, sobre os livros Urupês e Problema Vital, publicado na Revista Contemporânea de 22 de fevereiro de 1919.

 

 

 

Figura 1:

Primeira edição do livro Problema Vital, lançado em fins de 1918

 

(3) O artigo Velha Praga, de autoria de Monteiro Lobato, foi publicado em 12 de novembro de 1914, no jornal O Estado de São Paulo, na página 3, quinta coluna. Pela primeira vez, Jeca Tatu foi citado.

Velha Praga

Andam todos em nossa terra por tal forma estonteados com as proezas infernais dos belacíssimos “vons” alemães, que não sobram olhos para enxergar males caseiros.

Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que se lá fora o fogo da guerra lavra implacável, fogo não menos destruidor devasta nossas matas, com furor não menos germânico.

Em agosto, por força do excessivo prolongamento do inverno, “von Fogo” lambeu montes e vales, sem um momento de tréguas, durante o mês inteiro.

Vieram em começos de setembro chuvinhas de apagar poeira e, breve, novo “verão de sol” se estirou por outubro adentro, dando azo a que se torrasse tudo quanto escapara à sanha de agosto.

A serra da Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na Europa, e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui e acolá, de manchas de verdura – as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela cautela dos aceiros. Tudo mais é crepe negro.

À hora em que escrevemos, fins de outubro, chove. Mas que chuva caínha! Que miséria d’água! Enquanto caem do céu pingos homeopáticos, medidos a conta-gotas, o fogo, amortecido mas não dominado, amoita-se insidioso nas piúcas,a fumegar imperceptivelmente, pronto para rebentar em chamas mal se limpe  o céu e o sol lhe dê a mão.

Preocupa à nossa gente civilizada o conhecer em quanto fica na Europa por dia, em francos e cêntimos, um soldado em guerra; mas ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas. As velhas camadas de humus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralizado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes; a alteração para piora do clima com a agravação crescente das secas; os vedos e aramados perdidos; o gado morto ou depreciado pela falta de pastos; as cento e uma particularidades que dizem respeito a esta ou aquela zona e, dentro delas, a esta ou aquela “situação” agrícola.

Isto, bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se; somar ninguém soma…

É peculiar de agosto, e típica, esta desastrosa queima de matas; nunca, porém, assumiu tamanha violência, nem alcançou tal extensão, como neste tortíssimo 1914 que, benza-o Deus, parece aparentado de perto com o célebre ano 1000 de macabra memória. Tudo nele culmina, vai logo às do cabo, sem conta nem medida. As queimas não fugiram à regra.

Razão sobeja para, desta feita, encarnarmos a sério o problema. Do contrário a Mantiqueira será em pouco tempo toda um sapezeiro sem fim, erisipelado de samambaias – esses dois términos à uberdade das terras montanhosas.

Qual a causa da renitente calamidade?

E mister um rodeio para chegar lá.

A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o “Argas” o é aos galinheiros ou o “Sarcoptes mutans” à perna das aves domésticas. Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do “Porrigo decalvans”, o parasita do couro cabeludo produtor da “pelada”, pois que onde ele assiste se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude, núa e descalvada. Em quatro anos, a mais ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos e das perobeiras milenárias – seu orgulho e grandeza, para, em achincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta à humildade da vassourinha e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita do sapezeiro – sua tortura e vergonha.

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau] e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se.

É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca de “agregado; nômade por força de vago atavismos, não se liga à terra, como o campônio europeu “agrega-se”, tal qual o “sarcopte”, pelo tempo necessário à completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta para diante com a mesma bagagem com que ali chegou.

Vem de um sapezeiro para criar outro. Coexistem em íntima simbiose: sapé e caboclo são vidas associadas. Este inventou aquele e lhe dilata os domínios; em troca o sapé lhe cobre a choça e lhe fornece fachos para queimar a colméia das pobres abelhas.

Chegam silenciosamente, ele e a “sarcopta” fêmea, esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos à ourela da saia – este já de pitinho na boca e faca à cinta. Completam o rancho um cachorro sarnento – Brinquinho, a foice, a enxada, a picapau, o pilãozinho de sal, a panela de barro, um santo encardido, três galinhas pévas e um galo índio. Com estes simpes ingredientes, o fazedor de sapezeiros perpetua a espécie e a obra de esterilização iniciada com os remotíssimos avós.

Acampam.

Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam idéia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza – se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias.

Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte daquela paragem.

Começam as requisições. Com a picapau o caboclo limpa a floresta das aves incautas. Pólvora e chumbo adquire-os vendendo palmitos no povoado vizinho. É este um traço curioso da vida do caboclo e explica o seu largo dispêndio de pólvora; quando o palmito escasseia, raream os tiros, só a caça grande merecendo sua carga de chumbo; se o palmital se extingue, exultam as pacas: está encerrada a estação venatória.

Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando ao mais belo pau. Árvores diante de cuja majestosa beleza Ruskin choraria de comoção, ele as derriba, impassível, para extrair um mel-de-pau escondido num ôco.

Pronto o roçado, e chegado o tempo da queima, entra em funções o isqueiro. Mas aqui o “sarcopte” se faz raposa. Como não ignora que a lei impõe aos roçados um aceiro de dimensões suficientes à circunscrição do fogo, urde traças para iludir a lei, cocando dest’arte a insigne preguiça e a velha malignidade.

Cisma o caboclo à porta da cabana.

Cisma, de fato, não devaneios líricos, mas jeitos de transgredir as posturas com a responsabilidade a salvo. E consegue-o. Arranja sempre um álibi demonstrativo de que não esteve lá no dia do fogo.

Onze horas.

O sol quase a pino queima como chama. Um “sarcopte” anda por ali, ressabiado. Minutos após crepita a labareda inicial, medrosa, numa touça mais seca; oscila incerta; ondeia ao vento; mas logo encorpa, cresce, avulta, tumultua infrene e, senhora do campo, estruge fragorosa com infernal violência, devorando as tranqueiras, estorricando as mais altas frondes, despejando para o céu golfões de fumo estrelejado de faíscas.

É o fogo-de-mato!

E como não o detém nenhum aceiro, esse fogo invade a floresta e caminha por ela a dentro, ora frouxo, nas capetingas  ralas, ora maciço, aos estouros, nas moitas de taquaruçú; caminha sem tréguas, moroso e tíbio quando a noite fecha, insolente se o sol o ajuda.

E vai galgando montes em arrancadas furiosas, ou descendo encostas a passo lento e traiçoeiro até que o detenha a barragem natural dum rio, estrada ou grota noruega.

Barrado, inflete para os flancos, ladeia o obstáculo, deixa-o para trás, esgueira-se para os lados – e lá continua o abrasamento implacável. Amordaçado por uma chuva repentina, alapa-se nas piúcas, quieto e invisível,  para no dia seguinte, ao esquentar do sol, prosseguir na faina carbonizante.

Quem foi o incendiário? Donde partiu o fogo?

Indaga-se, descobre-se o Nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala, amoitado num litro de terra litigiosa.

E agora? Que fazer? Processá-lo?

Não há recurso legal contra ele. A única pena possível, barata, fácil e já estabelecida como praxe, é “tocá-lo”.

Curioso este preceito: “ao caboclo, toca-se”.

Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala. E tão afeito anda ele a isso, que é comum ouví-lo dizer: “Se eu fizer tal coisa o senhor não me toca?”

Justiça sumária – que não pune, entretanto, dado o nomadismo do paciente.

Enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.

-       Êta fogo bonito!

No vazio de sua vida semi-selvagem, em que os incidentes são um jacú abatido, uma paca fisgada n’água ou o filho novimensal, a queimada é o grande espetáculo do ano, supremo regalo dos olhos e dos ouvidos.

Entrado setembro, começo das “águas”, o caboclo planta na terra em cinzas um bocado de milho, feijão e arroz; mas o valor da sua produção é nenhum diante dos males que para preparar uma quarta de chão ele semeou.

O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar fome”, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro – está tudo muito bem; assim fez o pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.

Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar fica a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará a sua estada ali; o mais se apaga como por encanto. A terra reabsorve os frágeis materiais da choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jéca Tatú ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha.

 

(4) – O artigo Urupês, que deu nome ao livro de contos lançado em 1918, foi publicado no jornal O Estado de São Paulo, de 23 de dezembro de 1914, na página 6, quinta coluna.

Urupês

Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar ao advento dos Rondons que, ao invés de imaginarem índios num gabinete, com reminiscências de Chateaubriand na cabeça e a Iracema aberta sobre os joelhos, metem-se a palmilhar sertões de Winchester em punho.

Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural como o sonhava Rousseau, protótipo de tantas perfeições humanas que no romance, ombro a ombro com altos tipos civilizados, a todos sobrelevava em beleza d’alma e corpo.

Contrapôs-lhe a cruel etnologia dos sertanistas modernos um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci.

Por felicidade nossa – a de D. Antonio de Mariz – não os viu Alencar; sonhou-os qual Rousseau. Do contrário lá teríamos o filho de Arará a moquear a linda menina num bom braseiro de pau brasil, em vez de acompanhá-la em adoração pelas selvas, como o Ariel benfazejo do Paquequer.

A sedução do imaginoso romancista criou forte corrente. Todo o clã plumitivo deu de forjar seu indiozinho refegado de Peri e Atala. Em sonetos, contos e novelas, hoje esquecidos, consumiram-se tabas inteiras de aimorés sanhudos, com virtudes romanas por dentro e penas de tucano por fora.

Vindo o público a bocejar de farto, já céptico ante o crescente desmantelo do ideal, cessou no mercado literário a procura de bugres homéricos, inúbias, tacapes, borés, piágas e virgens bronzeadas. Armas e heróis desandaram cabisbaixos, rumo ao porão onde se guardam os móveis fora de uso, saudoso museu de extintas pilhas elétricas que a seu tempo galvanizaram nervos. E lá acamam poeira cochichando reminiscências com a barba de D. João de Castro, com os frankisks de Herculano, com os frades de Garrett e que tais…

Não morreu, todavia.

Evoluiu.

O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de “caboclismo”. O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; o ocara virou rancho de sapé; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxadal o boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta ao peito.

Mas o substrato psíquico não mudou: orgulho indomável, independência, fidalguia, coragem, virilidade heróica, todo o recheio em suma, sem faltar uma azeitona, dos Perís e Ubirajaras.

Estes setembrino rebrotar duma arte morta inda se não desbagoou de todos os frutos. Terá o seu “I Juca Pirama”, o seu “Canto do Piaga” e talvez dê ópera lírica.

Mas, completado o ciclo, virão destroçar o inverno em flor da ilusão indianista os prosaicos demolidores de ídolos – gente má e sem poesia. Irão os malvados esgaravatar o ícone com as curetas da ciência. E que feias se hão de entrever as caipirinhas cor de jambo de Fagundes Varela! E que chambões e sornas os Peris de calça, camisa e faca à cinta!

Isso, para o futuro. Hoje ainda há perigo em bulir no vespeiro: o caboclo é o “Ai Jesus!” nacional.

É de ver o orgulhoso entono com que respeitáveis figurões batem no peito exclamando com altivez: sou raça de caboclo!

Anos atrás o orgulho estava numa ascendência de tanga, inçada de penas de tucano, com dramas íntimos e flechaços de curare.

Dia virá em que os veremos, murchos de prosápia, confessar o verdadeiro avô: – um dos quatrocentos de Gedeão trazidos por Tomé de Souza¹ num barco daqueles tempos, nosso mui nobre e fecundo “Mayflower”.

Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé.

Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito histórico e o país desperta estrouvinhado à crise duma mudança de dono, o caboclo ergue-se, espia e acocora-se de novo.

Pelo 13 de Maio, mal esvoaça o florido decreto da Princesa e o negro exausto larga num uf! o cabo da enxada, o caboclo olha, coça a cabeça, ‘magina e deixa que do velho mundo venha quem nele pegue de novo.

A 15 de Novembro troca-se um trono vitalício pela cadeira quadrienal. O país bestifíca-se ante o inopinado da mudança.² O caboclo não dá pela coisa.

Vem Florianol estouram as granadas de Custódiol Gumercidndo bate às portas de Roimal Incitatus derranca o país.³ O caboclo continua de cócoras, a modorrar…

Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida, Jéca, antes de agir, acocora-se.

Jéca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie.

Hei-lo que vem falar ao patrão. Entrou, saudou. Seu primeiro movimento após prender entre os lábios a palha de milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d’esguicho, é sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. Só então destrava a língua e a inteligência.

– “Não vê que…

De pé ou sentado as idéias se lhe entramam, a língua emperra e não há de dizer coisa com coisa.

De noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao fogo para “aquentá-lo”, imitado da mulher e da prole.

Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostas um cabo de foice, fazê-lo noutra posição será desastre infalível. Há de ser de cócoras.

Nos mercados, para onde leva a quitanda domingueira, é de cócoras, como um faquir do Bramaputra, que vigia os cachinhos de brejaúva ou o feixe de três palmitos.

Pobre J’[eca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!

Jéca mercador, Jéca lavrador, Jéca fisólofo…

Quando comparece às feiras, todo mundo logo advinha o que ele traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher – cocos de tucum ou jissara, guabirobas, bacuparis, maracujás, jataís, pinhões, orquídeas ou artefatos de taquara-poca – peneiras, cestinhas, samburás, tipitis, pios de caçador ou utensílios de madeira mole – gamelas, pilõesinhos, colheres de pau.

Nada Mais.

Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor esforço – e nisto vai longo.

Começa na morada. Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bichos que moram em toca e gargalhar ao joão-de-barro. Pura biboca de bosquimano. Mobília, nenhuma. A cama é uma espipada esteira de peri posta sobre o chão batido.

Às vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas – para hospedes. Três pernas permitem equilíbrio inútil, portanto, meter a Quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão. Para que assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados calcanhares sobre os quais se sentam?

Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo – colher, garfo e faca a um tempo?

No mais, umas cuias, gamelinhas, um pote esbeiçado, a pichorra e a panela de feijão.

Nada de armários ou baús. A roupa, guarda-a no corpo. Só tem dois parelhosl um que traz no uso e outro na lavagem.

Os mantimentos apaióla nos cantos da casa.

Inventou um cipó preso à cumieira, de gancho na ponta e um disco de lata no alto, alí pendura o toucinho, a salvo dos gatos e ratos.

Da parede pende a espingarda picapau, o polvarinho de chifre, o S. Benedito defumado, o rabo de tatu e as palmas bentas de queimar durante as fortes trovoadas. Servem de gaveta os buracos da parede.

Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão Quarta perna ao banco. Para que? Vive-se bem sem isso.

Se pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede, Jéca não se move a repô-las. Ficam pelo resto da vida os buracos abertos, a entremostrarem nesgas de céu.

Quando a palha do teto, apodrecida, greta em fendas por onde pinga a chuva, Jéca, em vez de remendar a tortura, limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamelinha a água gotejante…

Remendo… Para que? Se uma casa dura dez anos e faltam “apenas ” nove para que ele abandone aquela? Esta filosofia economiza reparos.

Na mansão de Jéca a parede dos fundos bojou para fora um ventre empanzinado, ameaçando ruir; os barrotes, cortados pela umidade, oscilam na podriqueira do baldrame. Afim de neutralizar o desaprumo e prevenir suas conseqüências, ele grudou na parede uma Nossa Senhora enquadrada em moldurinha amarela – santo de mascate.

– “Por que não remenda essa parede, homem de Deus?

– “Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?

Não obstante, “por via das dúvidas” , quando ronca a trovoada Jéca abandona a toca e vai agachar-se no ôco dum velho embirussu do quintal – para se saborear de longe com a eficácia da escora santa.

Um pedaço de pau dispensaria o milagre! mas entre pendurar o santo e tomar da foice, subir ao morro, cortar a madeira, atorá-la, baldeá-la e especar a parede, o sacerdote da Grande lei do Menor Esforço não vacila. É coerente.

Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O mato o beira. Nem árvores frutíferas, nem horta, nem flores – nada revelador de permanência.

Há mil razões para isso; porque não é sua a terral porque se o “tocarem” não ficará nada que a outrem aproveite; porque para frutas há o mato; porque a “criação” come; porque…

– “Mas, criatura, com um vedozinho por ali… A madeira está à mão, o cipó é tanto…”

Jéca, interpelado, olha para o morro coberto de moirões, olha para o terreiro nu, coça a cabeça e cuspilha.

– “Não paga a pena”.

Todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a pena. Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito se vive.

Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O plantio se faz com um palmo de rama fincada em qualquer chão. Não pede cuidados. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem vergonha.

Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo reside nas benemerências sem conta da mandioca. Talvez que sem ela se pusesse de pé e andasse. Mas enquanto dispuser de um pão cujo preparo se resume no plantar, colher e lançar sobre brasas, Jéca não mudará de vida. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade ambiente. Se a poder de estacas e diques o holandês extraiu de um brejo salgado a Holanda, essa jóia do esforço, é que ali nada o favorecia. Se a Inglaterra brotou das ilhas nevoentas da Caledônia, é que lá não medrava a mandioca. Medrasse, e talvez os víssemos hoje, os ingleses, tolhiços, de pé no chão, amarelentos, mariscando de peneira no Tamisa. Há bens que vêm para males. A mandioca ilustra este avesso de provérbio.

Outro precioso auxiliar da calaçaria é a cana. Dá rapadura, e para Jéca, simplificador da vida, dá garapa. Como não possui moenda, torce a pulso sobre a cuia de café um rolete, depois de bem massetados os nós; açucara assim a beberagem, fugindo aos trâmites condutores do caldo de cana à rapadura.

Todavia, est modus in rebus. E assim como ao lado do restolho cresce o bom pé de milho, contrasta com a cristianíssima simplicidade do Jéca a opulência de um seu vizinho e compadre que “está muito bem.” A terra onde mora é sua. Possui ainda uma égua, monjolo e espingarda de dois canos. Pesa nos destinos políticos do país com o seu voto e nos econômicos com o polvilho azedo de que é fabricante, tendo amealhado com ambos, voto e polvilho, para mais de quinhentos mil réis no fundo da arca.

Vive num corrupio de barganhas nas quais exercita uma astúcia nativa muito irmã da de Bertoldo. A esperteza última foi a barganha de um cavalo cego por uma égua de passo picado. Verdade é que a égua mancava das mãos, mas ainda assim valia dez mil réis mais do que o rossinante zanaga.

Esta e outras celebrizaram-lhe os engrimanços potreiros num raio de mil braças, grangeando-lhe a incondicional e babosa admiração do Jéca, para quem, fino como o compadre, “home” … nem mesmo o vigário de Itaóca!.

Aos domingos vai à vila bifurcado na magreza ventruda da Serena; leva apenso à garupa um filho e atrás o potrinho no trote, mais a mulher, com a criança nova enrolada no chale. Fecha o cortejo o indefectível Brinquinho, a resfolgar com um palmo de língua de fora.

O fato mais importante de sua vida é sem dúvida votar no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta do casamento, sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras, entala os pés num alentado sapatão de bezerro; ata ao pescoço um colarinho de bico e, sem gravata, ringindo e mancando, vai pegar o diploma de eleitor às mãos do chefe Coisada, que lho retém para maior garantia da fidelidade partidária.

Vota. Não sabe em quam, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos a que chama “sua graça”.

Se há tumulto, chuchurrea de pé firme, com heroísmo, as porretadas oposicionistas, e ao cabo segue para a casa do chefe, de galo cívico na testa e colarinho sungado para trás, afim de novamente lhe depor nas mão o “diploma”.

Grato e sorridente, o morubixaba galardoa-lhe o heroísmo, flagrantemente documentado pelo latejar do couro cabeludo, com um aperto de munheca e a promessa, para logo, duma inspetoria de quarteirão.

Representa este freguês o tipo clássico do sitiante já com um pé fora da classe. Exceção, díscolo que é, não vem ao caso. Aqui tratamos da regra e a regra é Jéca Tatu.

O mobiliário cerebral de Jéca, à parte o suculento recheio de superstições, vale o do casebre. O banquinho de três pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamelas, tudo se reedita dentro de seus miolos sob a forma de idéias: são as noções práticas da vida, que recebeu do pai e sem mudança transmitirá aos filhos.

O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção do país em que vive. Sabe que o mundo é grande, que há sempre terras para diante, que muito longe está a Corte com os graúdos e mais distante ainda a Bahia, donde vêm baianos pernósticos e cocos.

Perguntem ao Jéca quem é o presidente da República.

– “O homem que manda em nós tudo?

– “Sim.

– “Pois de certo que há de ser o imperador.

Em matéria de civismo não sobe de ponto.

– “Guerra? T’esconjuro! Meu pai viveu afundado no mato p’ra mais de cinco anos por causa da guerra grande. (4) Eu, para escapar do “reculutamento”, sou inté capaz de cortar um dedo, como o meu tio Lourenço…

Guerra, defesa nacional, ação administrativa, tudo quanto cheira a governo resume-se para o caboclo numa palavra apavorante – “reculutamento”.

Quando em princípios da Presidência Hermes andou na balha um recenseamento esquecido a Offenbach, o caboclo tremeu e entrou a casar em massa. Aquilo “havera de ser reculutamento”, e os casados, na voz corrente, escapavam à redada.

A sua medicina corre parelhas com o civismo e a mobília – em qualidade. Quantitativamente, assombra. Da noite cerebral pirilampejam-lhe apozemas, cerotos, arrobes e eletuários escapos à sagacidade cômica de Mark Twain. Compendia-os um Chernoviz não escrito, monumento de galhofa onde não há rir, lúgubre como é o epílogo. A rede na qual dois homens levam à cova as vítimas de semelhante farmacopéia é o espetáculo mais triste da roça.

Quem aplica as mezinhas é o “curador”, um Eusébio Macário de pé no chão e cérebro trancado como muita de taquaruçu. O veículo usual das drogas é sempre a pinga – meio honesto de render homenagem à deusa Cachaça, divindade que entre eles ainda não encontrou heréticos.

Doenças hajam que remédios não faltam.

Para bronquite, é um porrete cuspir o doente na boca de um peixe vivo e soltá-lo: o mal se vai com o peixe água abaixo…

Para “quebranto de ossos”, já não é tão simples a medicação. Tomam-se três contas de rosário, três galhos de alecrim, três limas de bico, três iscas de palma benta, três raminhos de arruda, três ovos de pata preta (com casca; sem casca desanda) e um saquinho de picumã! mete-se tudo numa gamela d’água e banha-se naquilo o doente, fazendo-o tragar três goles da zurrapa. É infalível.

O específico da brotoeja consiste em cozimento de beiço de pote para lavagens. Ainda há aqui um pormenor de monta; é preciso que antes do banho a mãe do doente molhe na água a ponta de sua trança. As brotoejas saram como por encanto.

Para dor de peito que “responde na cacunda”, cataplasma de “jasmim de cachorro” é um porrete.

Além desta alopatia, para a qual contribui tudo quanto de mais repugnante e inócuo existe na natureza, há a medicação simpática, baseada na influição misteriosa de objetos, palavras e atos sobre o corpo humano.

O ritual bizantino dentro de cujas maranhas os filhos do Jéca vêm ao mundo, e do qual não há fugir sob pena de gravíssimas conseqüências futuras, daria um in-fólio d’alto fôlego ao Sílvio Romero bastante operoso que se propusesse a compendiá-lo.

Num parto difícil nada tão eficaz como engolir três caroços de feijão mouro, de passo que a parturiente veste pelo avesso a camisa do marido e põe na cabeça, também pelo avesso, o seu chapéu. Falhando esta simpatia, há um derradeiro recurso: colar no ventre encruado a imagem de S. Benedito.

Nesses momentos angustiosos outra mulher não penetre no recinto sem primeiro defumar-se ao fogo, nem traga na mão caça ou peixe. A criança morreria pagã. A omissão de qualquer destes preceitos fará chover mil desgraças na cabeça do chorincas recém- nascido.

A posse de certos objetos confere dotes sobrenaturais. A invulnerabilidade às facadas ou cargas de chumbo é obtida graças à flor da samambaia.

Esta planta, conta Jéca, só floresce uma vez por ano, e só produz em cada samambaial uma flor. Isto à meia noite, no dia de S. Bartolomeu. É preciso ser muito esperto para colhe-la, porque também o diabo anda à cata. Quem consegue pegar uma, ouve logo um estouro e tonteia ao cheiro de enxofre – mas livra-se de faca e chumbo pelo resto da vida.

Todos os volumes do Larousse não bastariam para catalogar-lhes as crendices, e como não há linhas divisórias entre estas e a religião, confundem-se ambas em maranhada teia, não havendo distinguir onde pára uma e começa outra.

A idéia de Deus e dos santos torna-se jéco-cêntrica. São os santos os graúdos lá de cima, os coronéis celestes, debruçados no azul para espreitar-lhes a vidinha e intervir nela ajudando-os ou castigando-os, como os metediços deuses de Homero. Uma torcedura de pé, um estrepe, o feijão entornado, o pote que rachou, o bicho que arruinou – tudo diabruras da corte celeste, para castigo de más intenções ou atos.

Daí o fatalismo. Se tudo movem cordéis lá de cima, para que lutar, reagir? Deus quis. A maior catástrofe é recebida com esta exclamação, muito parenta do “Allah Kébir” do beduíno.

E na arte?

Nada.

A arte rústica do campônio europeu é opulenta a ponto de constituir preciosa fonte de sugestões para os artistas de escol. Em nenhum país o povo vive sem a ela recorrer para um ingênuo embelezamento da vida. Já não se fala no camponês italiano ou teutônico, filho de alfobres mimosos, propícios a todas as florações estéticas. Mas o russo, o hirsuto mujique a meio atolado em barbarie crassa. Os vestuários nacionais da Ucrânia nos quais a cor viva e o sarapantado da ornamentação indicam a ingenuidade do primitivo, os isbas da Lituânia, sua cerâmica, os bordados, os móveis, os utensílios de cozinha, tudo revela no mais rude dos campônios o sentimento da arte.

No samoieda, no pele-vermelha, no abexim, no Papua, un arabesco ingênuo costuma ornar-lhes as armas – como lhes ornam a vida canções repassadas de ritmos sugestivos.

Que nada é isso, sabido como já o homem pré-histórico, companheiro do urso das cavernas, entalhava perfis de mamutes em chifres de rena.

Egresso à regra, não denuncia o nosso caboclo o mais remoto traço de um sentimento nascido com o troglodita.

Esmerilhemos o seu casebre: que é que ali denota a existência do mais vago senso estético? Uma chumbada no cabo do relho e uns ziguezagues a canivete ou fogo pelo roliço do porretinho de guatambú. É tudo.

Às vezes surge numa família um gênio musical cuja fama esvoaça pelas redondezas. Ei-lo na viola concentra-se, tosse, cuspilha o pigarro, fere as cordase “tempera” , E fica nisso, no tempero.

Dirão: e a modinha?

A modinha, como as demais manifestações de arte popular existentes no país, é obra do mulato, em cujas veias o sangue recente do europeu, rico de atavismos estéticos, borbulha d’envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro.

O caboclo é soturno.

Não canta senão rezas lúgubres.

Não dança senão o cateretê aladainhado.

Não esculpe o cabo da faca, como o cabila.

Não compõe sua canção, como o felá do Egito.

No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.

Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.

Só ele, no meio da tanta vida, não vive…

(5) O livro Urupês foi lançado em 1918 (Vida Moderna, 11 de julho de 1918; O Paiz, 14 de agosto de 1918, terceira coluna). No mesmo ano foi lançada uma segunda edição (Fon-Fon, 21 de setembro de 1918).

 

 

 

lobato

 

Reunia os artigos Velha Praga e Urupês, ambos, como já mencionado, publicados no O Estado de São Paulo, em 1914, além de mais 12 contos, escritos entre 1915 e 1917: O estigmaBocatortaO mata-pauBucólicaMeu conto de MaupassantA colcha de retalhosPollice VersoO engraçado arrependido, Um suplício moderno, O comprador de fazendas, Os faroleiros e A Vingança da Peroba. A maior parte dos contos já havia sido publicado na Revista do Brasil, lançada em janeiro de 1916 e adquirida por Lobato em junho de 1918.

 

Andrea C. T. Wanderley

Editora e pesquisadora da Brasiliana Fotográfica

Inauguração da estátua equestre de dom Pedro I, na atual Praça Tiradentes

A estátua equestre de dom Pedro I (1798 – 1834), primeira escultura pública do Brasil, foi inaugurada na Praça da Constituição, atual Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, em 30 de março de 1862 (Diário do Rio de Janeiro, 31 de março de 1862), e uma grande festa cívica aconteceu na cidade para celebrar o evento. Segundo Paulo Knauss, “Esta inauguração consagrou a afirmação da escultura pública no Brasil e instalou uma tradição que atravessou os tempos até os dias de hoje“. A inauguração estava programada para se realizar no dia 25 de março, data da ratificação da Constituição Brasileira de 1824, mas fortes chuvas adiaram o evento para o dia 30 de março (Diário do Rio de Janeiro, 26 de março e 31 de março de 1862). O monumento foi colocado de frente para a Rua da Imperatriz em direção a então sede da Academia Imperial de Belas Artes. Do outro lado, a Rua Sete de Setembro levava até a praça da estátua, estabelecendo a ligação com a sede do governo, que ficava no Largo do Paço.

A ideia do projeto de construção de uma estátua em homenagem a dom Pedro I havia surgido, por iniciativa da Câmara Municipal, em 1825, 38 anos antes da inauguração do monumento. A Brasiliana Fotográfica lembra a efeméride com a publicação de três fotografias da estátua: uma de Augusto Stahl (1828 – 1877), uma de Manoel Banchiere, que nessa época possuía um estabelecimento fotográfico na Rua do Hospício, 104; e uma de Micheles. Na estátua, esculpida pelo francês Louis Rochet (1813 – 1878), que foi agraciado com a comenda Ordem de Cristo, dom Pedro I está proclamando a Independência do Brasil com o Manifesto às Nações na mão (Diário do Rio de Janeiro, 1º de abril de 1862, na primeira coluna).

No monumento, as principais datas da vida do homenageado estão inscritas no gradil: 12 de outubro de 1798 (nascimento) – 6 de novembro de 1817 (casamento com dona Leopoldina) – 9 de janeiro de 1822 (Dia do Fico) – 13 de maio de 1822 (tornou-se Defensor Perpétuo do Brasil) – 12 de outubro de 1822 (aclamação como imperador do Brasil) – 1 de dezembro de 1822 (coroação) – 25 de março de 1824 (ratificação da primeira Constituição Brasileira) – 17 de outubro de 1829 (casamento com dona Amélia). No pedestal, há imagens de animais e indígenas em quatro alegorias dos rios nacionais. A do rio São Francisco traz um indígena sentado perto de uma capivara e de um tamanduá bandeira; a do rio Madeira, é representada por um indígena com arco e flexa em um movimento de disparo junto a uma ave, um peixe e uma tartaruga; a do rio Amazonas mostra uma indígena com uma criança nas costas, um indígena com os pés sobre um jacaré e uma arara; e, finalmente, a do rio Paraná, tem como alegoria um indígena segurando uma flexa e uma indígena. Os brasões das vintes províncias imperiais também estão representados. Abaixo da estátua está escrito “D. Pedro I, gratidão dos brasileiros”.

 

Acessando o link para as fotografias da estátua equestre de dom Pedro I disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas.

 

 

A Câmara Municipal, centro político do movimento de independência no Brasil, lançou o projeto da construção de uma estátua equestre de dom Pedro I, em 1825 (Diário do Rio de Janeiro11 de maio14 de julho17 de outubro8 de novembro  e 9 de novembro de 1925; O Despertador Constitucional, 24 de maio de 1825) .

No dia 13 de maio de 1825, foi solicitada a dom Pedro I permissão para levá-la a efeito:

“Senhor – O Senado da Câmara desta muito leal e heroica cidade do Rio de Janeiro, tendo sido até aqui fiel intérprete dos sentimentos da nação brasileira e executor dos seus desejos em todas as épocas memoráveis da sua feliz emancipação, sondando atualmente a opinião pública, tem penetrado ser sua vontade que a muito leal e poderosa pessoa de V. M. I. se inaugurasse um monumento público que, fazendo recordar a presente e futuras gerações à memória dos altos feitos de V. M., possa ao mesmo tempo servir de eterno padrão da sua sensibilidade e de sua gratidão.

Neste sentir, pois, Senhor, o Senado da Câmara se apressa a rogar a V. M. I. queira benigno permitir-lhe a faculdade de poder dar o primeiro passo para tão augusta e magnânima empresa, lisonjeando-se de a pedir neste feliz aniversário já tão memorável nos fastos da nação.

Digne-se, pois, V. M., acolhendo benignamente a súplica do Senado desta cidade, anuir aos ardentes desejos dele, do povo por quem representa e, sem receio de errar, se pode dizer de todo o povo do Império. – O presidente, Lúcio Soares Teixeira de Gouveia. – Os vereadores, Manuel Frazão de Sousa Rondon, Antônio Gomes de Brito, Lourenço Antônio do Rego. – Procurador interino, José Agostinho Barbosa.”

O Imperador respondeu:

“Acato a lembrança do Senado e agradeço”.

O pintor Jean-Baptiste Debret (1768 – 1848) e o arquiteto Grandjean de Montigny (1776 – 1850), membros da Missão Francesa que havia chegado no Rio de Janeiro em 1816, faziam parte da comissão formada para encarregar-se do plano da estátua equestre. Os artistas e irmãos franceses Zeferino (1797 – 1851) e Marcos Ferrez (1788 – 1850) fizeram parte da lista de subscritos para a construção da estátua do imperador (Diário do Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1825). O homenageado autorizou o projeto e o Campo de Santana, onde ele havia sido aclamado, em 1822, foi escolhido para abrigar o monumento. Porém, a situação política que levou à abdicação do monarca, em 1831, deu fim ao empreendimento, para o qual Grandjean de Montigny (1776 – 1850) já havia preparado dois projetos (Aurora Fluminense, de 11 de abril de 1831).

No fim da década, em 1839, houve uma reunião na casa de Francisco Vilela Barbosa, o marquês de Paranaguá (1769 – 1946), quando formou-se uma comissão para a retomada do projeto da estátua equestre. Além do anfitrião, faziam parte da comissão Paulo José de Mello (1779 – 1848), José Antonio Lisboa (1777 – 1850), Cornélio Ferreira (1802 – 1878), Maciel Monteiro (1804 – 1868) e Manoel Manoel de Araújo Porto-Alegre (1806 – 1879). Este último proferiu um discurso, em 23 de abril de 1839, sobre a necessidade de construir-se uma estátua em homenagem a dom Pedro I e para esse fim continuar a subscrição para o projeto e arrecadar o produto da antiga, que estaria depositado no Tesouro Nacional.  Foi encaminhada à regência uma petição com esse objetivo. O senador Bernardo Pereira de Vasconcellos (1795 – 1850) nomeou José Antonio Lisboa (1777 – 1850) presidente da comissão, mas, devido às circunstâncias políticas, após uma viagem à Europa, Lisboa adiou as providências para o desenvolvimento do projeto.

Em 1840, um leitor do Diário de Rio de Janeiro, que se identificou como Um do povo, enviou uma carta ao jornal cobrando a realização da estátua (Diário do Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1840, na primeira coluna). Outro, que se identificou como O Curioso, perguntava para onde havia ido o produto da subscrição aberta nesta corte e em melhores tempos para a a estátua equestre do FUNDADOR DO IMPÉRIO, o sr. Dom Pedro 1º (Diário do Rio de Janeiro, 29 de julho de 1842, na primeira coluna). Em 1844, Porto Alegre conversou com o senador José Clemente (1787 – 1854) que revelou o desejo de retomar o plano de construção da estátua. Para isso, pediu toda a documentação e também encomendou um desenho a Porto Alegre. Mais uma vez as circunstâncias políticas desviaram a atenção ao projeto. Em 1846, um leitor, Um brasileiro de 1822, felicitava o sr. Dias da Motta por ter feito uma proposta à Câmara de Deputados, uma moção pedindo a execução do monumento (Diário do Rio de Janeiro, 28 de julho de 1846, na primeira coluna).

Finalmente, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro deliberou, em sessão extraordinária de 7 de setembro de 1854, sob a presidência de Francisco Lopes da Cunha (? – 1874) e por proposta de Roberto Jorge Haddock Lobo (1817 – 1869), a retomada da intenção da construção da estátua e foi aberta uma subscrição pública para esse fim (Diário do Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1854, na penúltima coluna e 24 de outubro de 1854, na primeira coluna). Em 24 de setembro de 1854, aconteceu a primeira sessão da comissão nomeada pela Câmara Municipal para a construção da estátua equestre de dom Pedro I, na casa do conselheiro Eusébio de Queiroz Coutinho Mattoso Câmara (1812 -1868), presidente da comissão – ele passou para a história como o autor da Lei Eusébio de Queiroz, que reprimia o tráfico de escravos, e do Código Comercial, ambos de 1850. Faziam parte da comissão o barão do Bonfim (1790 – 1873), Manoel de Araújo Porto-Alegre (1806 – 1879), João Antonio de Miranda (1805 – 1861), Polydoro Jordão (1802 – 1879), João Affonso Lima Nogueira, Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891) e Roberto Jorge Haddock Lobo (1817 – 1869). Foi divulgada a convocação de artistas nacionais e estrangeiros a apresentarem em concurso um pensamento para a execução de uma estátua equestre em bronze (Diário do Rio de Janeiro, 23 de setembro de 1854, na terceira coluna). No mesmo ano, 1854, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro passou a apoiar a iniciativa e foi justamente Manuel de Araújo Porto-Alegre, um de seus membros e também professor da Academia Imperial de Belas Artes, quem defendeu, no jornal O Guanabara, a opção pela estátua equestre associada ao gesto que traduz o ato da Independência.

Em 2 de janeiro de 1855, foi enviada a proposta do artista francês Louis Rouchet (1813 – 1878) ao presidente da comissão, Eusébio de Queiroz Coutinho Mattoso Câmara (Diário do Rio de Janeiro, 19 de junho de 1855, na quarta coluna). Foi realizada, na Academia de Belas Artes, a entrega dos projetos para a escolha do escultor da estátua (Diário do Rio de Janeiro, 11 de março de 1855, na segunda coluna). De 27 de junho a 11 de julho de 1855, os desenhos e projetos apresentados para a escultura ficaram expostos na Academia (Diário do Rio de Janeiro, 27 de junho de 1855, na quinta coluna). Uma coluna foi dedicada à crítica aos projetos, e, segundo a crítica, nenhum deles era satisfatório (Diário de Rio de Janeiro, 4 de julho de 1855, na primeira coluna). Três dos 35 inscritos para o projeto da escultura foram premiados e o professor substituto de Pintura Histórica da Academia Imperial das Belas Artes, o brasileiro João Maximiano Mafra (1823 – 1908), ficou em primeiro lugar. O artista alemão Ludwig Georg Bappo (Luiz Jorge Bappo), em segundo, e o francês Louis Rochet (1813 – 1878), em terceiro. Estavam subscritos com os pseudônimos de “Independência ou Morte”, “Dem berten strebe nack” e “Vivere arbitratu suo”, respectivamente. Na ocasião não ficou decidido o artista que executaria o monumento (Diário do Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1855, na segunda coluna e Jornal do Commercio, 2 de setembro de 1856, na sexta coluna). Porém, em artigo de Porto Alegre, na segunda edição da Revista Popular de 1859, ele afirmava que Rochet havia ficado em primeiro lugar no concurso e João Maximiano Mafra em segundo. De acordo com o historiador Paulo Knauss, foi devido a dificuldades técnicas para a confecção da obra no Brasil que coube ao francês Louis Rochet (1813 – 1878) a tarefa de desenvolver em seu ateliê parisiense o projeto de Mafra reorganizado por ele (Diário do Rio de Janeiro, 21 de abril de 1856, na terceira coluna).

 

 

Em 12 de outubro de 1855, data de aniversário de dom Pedro I, aconteceu a primeira cerimônia pública dos trabalhos no monumento. O malhete que bateu a primeira estaca foi guardado no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (Diário do Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1855, na quarta coluna e Jornal do Commercio, 13 de outubro de 1855, na segunda coluna). Cerca de um ano depois, dom Pedro II foi à Academia de Belas Artes para ser apresentado aos riscos e modelos da estátua equestre de seu pai (Diário do Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1856, na primeira coluna).

Em 8 de julho de 1856, o escultor Louis Rochet chegou ao Brasil (Correio Mercantil, 9 de julho de 1856, na segunda coluna). Retornou à Europa em 29 de outubro de 1856 (Diário do Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1956, na terceira coluna). Em 19 de outubro de 1861, a bordo do navio Reine du Monde, vindo do Havre, na França, chegaram ao Rio a estátua equestre e o pedestal do monumento (Diário de Pernambuco, 21 de outubro de 1861, na última coluna). Rochet voltou ao Brasil, a bordo do navio francês Bearn, em 17 de novembro de 1861 (Courrier du Brésil, 24 de novembro de 1861, na primeira coluna) para fazer o levantamento do monumento. Sua pedra fundamental foi lançada em 1º de janeiro de 1862 (Diário do Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1862, na primeira coluna).

Como já mencionado, a inauguração estava programada para acontecer no dia 25 de março de 1862, mas fortes chuvas adiaram o evento para o dia 30 de março (Diário do Rio de Janeiro, 26 de março e 31 de março de 1862). Rochet partiu do Rio de Janeiro em abril de 1862 (Diário do Rio de Janeiro, 25 de abril de 1862, na segunda coluna). A estátua foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, em 26 de setembro de 1978.

Um pequeno histórico do monumento foi publicado no Diário de Notícias de 5 de setembro de 1943. Há uma história curiosa sobre as imagens dos indígenas que estão nas laterais do monumento. Durante algum tempo, acreditou-se que eram obras do célebre escultor francês Auguste Rodin (1840 – 1917), mas, segundo a biografia de Louis Rochet, escrita por seu sobrinho, André Rochet, a informação de que Rodin teria trabalhado no ateliê do do tio surgiu no Brasil, de uma “opinião puramente pessoal” formulada pelo colecionador Djalma Hermes da Fonseca (Época, 27 de outubro de 2016).

 

 

A estátua foi reformada pela prefeitura do Rio para a comemoração do bicentenário da Independência do Brasil, em setembro de 2022.  No início de dezembro do mesmo ano foi vandalizada: teve pelo menos oito estrelas de ferro instaladas na parte superior de um gradil que a protege furtadas e cinco pedaços do gradeamento, em forma de seta e instalados na parte inferior, também foram levados.**

 

Intervenção na estátua equestre de dom Pedro I proposta por Diambe da Silva, realizada em janeiro de 2020*

 

“Em janeiro de 2020,  por volta das dez horas da noite, um grupo de vinte pessoas chegou à praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, carregando roupas, tonéis de gasolina e palitos de fósforo. Era o dia de “Devolta” uma proposição artística de Diambe da Silva que buscou intervir no território onde hoje está a estátua equestre de Dom Pedro I.”

Assim Pollyana Quintela inicia o texto Dom Pedro I sitiado: contrausos para a primeira escultura pública do Brasilpublicado na revista Palavra Solta, em 22 de junho de 2020, onde a autora propõe uma reflexão em torno, imagem, poder, memória e iconoclastia a partir de uma intervenção artística realizada por Diambe da Silva com a participação de Agrade Camíz, Agripina Manhattan, Ana Almeida, Carla Villa Lobos, Clara Tito, Camilla Braga, Daniel Sepulveda, Derrete, Gilson Plano, Julia Quimera, Laís Amaral, Lorena Pini, Mayara Velozo, Nel da Silva, Pamella Magno, Raphael Cruz, Rodrigo Rosm, Sophia Pinheiro e Walla Capelobo. O grupo foi acompanhado pelos advogados Lucas van Hombeeck e Marianna Borges Soares. A intervenção em imagens públicas podem recriá-las e ressignificá-las.

Naquela noite de janeiro, o grupo de artistas circundou o monumento com peças de roupas, em seguida rasgadas, cuidadosamente embebidas de gasolina e incendiadas. A ação aconteceu ao som de “Resplandescente”, de Ventura Profana, enquanto alguns integrantes faziam fotos e vídeos. Laminas lascivas, nossa brasa é fogo ardente, entoava a música da cantora negra, travesti e nordestina. Tudo não durou mais de 30 minutos. Quando a polícia chegou, o grupo, como a fumaça, já havia se dispersado sem confronto.

Nesse momento da história, depois da morte do norte-americano George Floyd (1973 – 2020), covardemente assassinado, em 25 de maio de 2020, por um policial em Mineápolis, cujas últimas palavras foram “Eu não posso respirar”, diversos monumentos considerados racistas foram derrubados em diferentes países como, por exemplo, a estátua do comerciante de escravizados, Edward Colston (1636 – 1721), em Bristol, na Inglaterra; e, na Bélgica, um busto do rei Leopoldo II (1835 – 1909), colonizador do Congo. Que destino seria dado a essas imagens?

A questão está posta e a discussão em torno do tema apresenta soluções bastante divergentes…”deslocá-las para museus, onde poderão ser recontextualizadas e debatidas criticamente; acompanhá-las de texto explicativo que pondere sobre o que representam; transformá-las a partir de apropriações e reconfigurações contemporâneas, com a colaboração de artistas e outros agentes, ou mesmo destruí-las. O que fazer com elas?

História é matéria viva e sempre reescrita.

Ainda segundo Pollyana Quintela: Aliás, a cada estátua derrubada, atualizamos a constatação de que o passado está vivo no modo como construímos nossas memórias coletivas.

 

*Esse trecho do artigo foi acrescentado no dia 15 de julho de 2020.

** Este parágrafo foi acrescentado em 2 de dezembro de 2022.

 

Andrea C. T. Wanderley

Editora-assistente e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

Fontes:

KNAUSS, Paulo. A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v.V, n.4, out/dez. 2010.

KNAUSS, Paulo. Às margens do pedestal. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, julho de 2016.

QUINTELA, Pollyana. Dom Pedro I sitiado: contrausos para a primeira escultura pública do Brasil in Revista Palavra Solta, 22 de junho de 2020.

RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. “Memória em Bronze: A estátua equestre de D. Pedro I”. In: Knauss, Paulo (org.). Cidade Vaidosa. Imagens Urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1999.

Site Instituto Estadual do Patrimônio Cultural

Site Inventário dos Monumentos

Site Palácio Nacional de Queluz

Veja Rio, 2 de dezembro de 2022

A Brasiliana Fotográfica fez também uma extensa pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.