Antes do paraíso, o expurgo: a Hospedaria Central da Ilha das Flores

A Brasiliana Fotográfica publica o artigo “Antes do paraíso, o expurgo: a Hospedaria Central da Ilha das Flores“, de autoria de Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, uma das instituições parceiras do portal. O texto aqui apresentado é um resumo da pesquisa de Pós-doutoramento Júnior realizada junto ao CEMI/Unicamp, com financiamento CNPq, entre 2003-5. A edificação da Hospedaria no Rio, uma  iniciativa de dom Pedro II foi instituída, em 1883, quando o governo Imperial, por meio da Inspetoria Geral de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura, adquiriu, por 170 contos de réis, a Ilha das Flores do senador do Império, José Inácio Silveira Motta (1811 -1893). Atualmente, existe na Ilha das Flores o Centro de Memória do Imigrante, mantido por um convênio entre a Marinha do Brasil e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 

Acessando o link para as fotografias da Ilha das Flores disponíveis na Brasiliana Fotográfica, o leitor poderá magnificar as imagens e verificar todos os dados referentes a elas. 

 

Com o artigo, estão destacadas três fotografias. Duas são de autoria de Marc Ferrez (1843 – 1923) - uma de fins do século XIX e uma sem data especificada, ambas do Instituto Moreira Salles, uma das instituições fundadoras do portal. Ferrez foi um brilhante cronista visual das paisagens e dos costumes cariocas da segunda metade do século XIX e do início do século XX. Sua vasta e abrangente obra iconográfica se equipara a dos maiores nomes da fotografia do mundo. Cerca de metade de sua produção fotográfica foi realizada no Rio de Janeiro e em seus arredores, onde registrou, além do patrimônio construído, a exuberância das paisagens naturais. Outro segmento de sua obra iconográfica registrou as várias regiões do Brasil – ele foi o único fotógrafo do século XIX que percorreu todas as regiões do país, tendo sido, no referido século, o principal responsável pela divulgação da imagem do país no exterior.

 

 

Há também uma imagem aérea da Ilha das Flores, realizada em 28 de novembro de 1936, por um fotógrafo ainda não identificado da Escola de Aviação Militar, cujo setor responsável pela atividade de fotografar era a Seção Foto e estava vinculada às escolas de aviação que formavam pilotos e observadores aéreos, além de funcionar como uma “escola técnica de aviação” que formava também militares especializados em fotografia e em toda a técnica envolvida. Essa imagem pertence  ao acervo do Museu Aeroespacial, instituição parceira da Brasiliana Fotográfica.

 

 

 

Antes do paraíso, o expurgo: a Hospedaria Central da Ilha das Flores [1]

Beatriz Kushnir[2]

 

A Ilha das Flores, no litoral da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, consagrou-se como uma arena de isolamentos, prisões e quarentenas; existindo tanto a Hospedaria para imigrantes em quarentena epidemiológica, como cárceres militares para presos políticos em 1922 – onde estiveram os revoltosos do Levante do Forte de Copacabana, como os tenentistas Cordeiro de Faria e Juarez Távora, os opositores à Revolução de 1930 e da Revolta Comunista de 1935 –, os “estrangeiros indesejáveis” a partir de 1942 – após o governo Vargas ter rompido relações com a Alemanha e a Itália – e no pós-1964.

Ali são instaladas tanto “campos de concentração” para “forasteiros perigosos”,  e/ou prisioneiros opositores do governo; além de imigrantes enfermos. Assim, nas malhas da burocracia do Estado brasileiro, a Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores foi desativada em meados da década de 1960. O presídio não. Servindo também como espaço para o encarceramento de presos políticos das esquerdas armadas na ditadura civil-militar do pós-1964.

Não restrita apenas à faceta das questões imigratórias desse espaço, pode-se perceber que esse lugar permite um estudo em um corte de tempo largo – de fins do Segundo Reinado até o governo do general Ernesto Geisel [1974-79]. Tendo quase 100 anos como mote de reflexão, o relevante é identificar a Ilha como zoneamento para o isolamento pelas questões “sanitárias”, físicas e políticas.

As hospedarias de imigrantes foram estruturas especificamente instituídas a partir da segunda metade do século 19 para receber cidadãos estrangeiros recém-chegados ao Brasil, que seriam posteriormente destinados ao trabalho rural no interior do país, ou ao serviços urbanos em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Acolheram imigrantes europeus, mas também havia árabes e japoneses a partir de 1908. Os que aportavam com enfermidades, o que não era raro, permaneciam em quarentena antes de regularizarem suas entradas em solo brasileiro, e as hospedarias eram encarregadas de atendê-los. Entre as mais importantes hospedarias que funcionaram no Brasil, destacam-se:

 

  • Hospedaria de imigrantes de São Paulo;
  • Hospedaria de imigrantes de Campinas (São Paulo);
  • Hospedaria de imigrantes do Pinheiro (Espírito Santo);
  • Hospedaria de imigrantes de Vitória (Hospedaria da Pedra d’Água);
  • Hospedaria de imigrantes de Alfredo Chaves (Espírito Santo);
  • Hospedaria de imigrantes da Ilha das Flores (Casa dos Imigrantes do Rio de Janeiro, Hospedaria Central);
  • Hospedaria de imigrantes do Saco do Padre Inácio (Florianópolis).

 

A travessia do Atlântico e a Hospedaria de Imigrantes

 

 

Essa reflexão privilegia alguns aspectos, entre estes, um enfoque muito particular do processo de imigração, para o Brasil, de fins do século 19 às três primeiras décadas do século 20. Para além de não concentrar a análise em uma etnia, a preocupação se vincula às políticas estatais quanto à permissão, ou não, de entrada de estrangeiros no Brasil.

Uma apreciação das múltiplas faces do fluxo imigratório para o Rio de Janeiro ainda demonstra grandes lacunas. Tal ponto é diferentemente esquadrinhado quando centramos os estudos do fenômeno em outros estados. Nestes, iniciativas governamentais e privadas, incentivam tanto a construção de uma “memória do imigrante”, como, por vezes, a ponderação de suas trajetórias. O fomento ao tema do percurso do imigrante e do seu papel na sociedade que o recebeu, remetem, muitas vezes, a uma idealização preconceituosa do tema racial e ao seu encarceramento à imagem sempre vitoriosa do self-made man.

A trajetória da imigração encontra sua versão máxima no Ellis Island Immigration Museum, nas costas de Manhattan.[3] Na América do Sul, tem-se o exemplo da Argentina, tendo Buenos Aires como, por longos anos, a principal “porta de acesso”, encontra-se a Hospedaria de imigrantes de Buenos Aires [Hotel de inmigrantes de La Rotond]. Naquele país, desde 1876 a Lei de Imigração e Colonização regulou a chegada de imigrantes estrangeiros e as medidas necessárias para evitar a mendicância. Dentro dessa premissa, se criou alguns centros de acolhida designados “albergues”, “asilos” e  “hotéis de imigrantes”, onde teriam direito a cinco dias de permanência.[4]

No caso do Brasil, sabe-se muito, por exemplo, sobre as Hospedarias de Imigrantes de São Paulo. Existiu, porém, outras, como arrolado anteriormente.

Essas edificações eram respostas as pressões, publicadas nos jornais da época, denunciando os maus-tratos para com os imigrantes. Assim, o aluguel de hotéis na zona do porto como alojamentos confortáveis e asseados, assustavam até mesmo os políticos que para ali se dirigiam no intuito de autorizar a estadia e alimentação dos imigrantes.[5] Cabe aqui ressaltar que as despesas para com os imigrantes, autorizadas pela Província, no caso de Pelotas, eram de 400 réis por adulto, porém nem sempre a Câmara Municipal – que era responsável por esse primeiro atendimento ao imigrante – era ressarcida, o que de fato acarretava morosidade no processo de abrigo e alimentação daqueles que chegavam.

A edificação da Hospedaria no Rio – cuja iniciativa é de dom Pedro II – instituiu-se quando, em 1883, o governo Imperial, por meio da Inspetoria Geral de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura, adquiriu, por 170 contos de réis, a Ilha das Flores do senador do Império, Silveira Mota. Originariamente, era um estabelecimento de piscicultura, lavoura e fábrica de goma de fécula de mandioca, que media 148 mil m². A Hospedaria era composta por um pavilhão em que os imigrantes permaneciam até conseguirem colocação em outros pontos do Rio ou outras Províncias, e posteriormente foi se tornando uma estrutura mais complexa, dotada de alojamento, administração, hospital, farmácia, refeitório, escola, lavanderia e área de lazer.

A Inspetoria Geral de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura foi instituída pelo Decreto nº. 6.129, de 23/2/1876, onde se fazia menção à necessidade de se constituir hospedarias de imigrantes, locais onde estes, assim que chegavam ao Brasil, permaneciam até que lhes fosse acertado um destino[6]. Estudos como o de Diana Zaidman [Imigração ao Brasil no Império: O Caso Particular da Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores, UFF/História, 1983], no então, indicam o ano de 1879 como a data de institucionalização da ideia e necessidade de se constituir a Hospedaria de Imigrantes na Ilhas das Flores, destinada a acolher os estrangeiros que chegavam ao Porto do Rio de Janeiro. A intenção era de fazer dessa hospedaria um centro de convergência de emigrantes ao Brasil. Demarcando forçadamente a centralidade da capital na questão, [7]

A grande concentração de imigrantes e a relevância que tiveram em outros estados têm dirigido as reflexões sobre o tema. Como sede da Corte e capital da República, essa cidade foi, por longo tempo, a principal cidade-porto do país, tendo importância no afluxo de imigrantes para o território brasileiro. O que pondera pensar o porquê dessa restrita atenção à questão neste estado.[8]

No sentido de preencher uma fração desse vácuo analítico, aponta-se a acuidade de se examinar parte da trajetória desta ilha, tomando como marco o instante em que esta passa a ser de propriedade do Estado brasileiro. A Ilha das Flores, na baía de Guanabara, localiza-se em frente ao município de São Gonçalo e a 10 km da Praça 15 de Novembro, no Rio, e forma com as Ilhas do Engenho, Ananazes, Mexingueiro e do Carvalho um pequeno arquipélago.

Na esfera das demandas imigratórias, é fundamental sublinhar as dificuldades em se demarcar etapas fixas desse processo. Os dados do Ministério do Império balizam o movimento de entrada de imigrantes entre 1855 – cinco anos após a decretação oficial do fim do tráfico  e do estabelecimento da “Lei de Terras”–, e 1889 – com a instauração republicana. Perseguindo as fontes, as do Departamento Nacional de Povoamento – órgão do Ministério da Agricultura –, circunscreveram-na entre 1877 e 1932. As informações deste acervo que se referem à Ilha das Flores convergem suas estatísticas ao período de janeiro de 1883, possivelmente a data de inauguração da hospedaria, até 1932 – provavelmente quando o Ministério da Agricultura altera a estrutura e competência do Departamento Nacional de Povoamento. Paralelamente as informações do que se passava no Rio e demonstrando que a prática da quarentena não se vinculava apenas ao eixo Rio/São Paulo, neste mesmo conjunto documental há outra série que compreende o período de dezembro de 1891 a setembro de 1932, e esquadrinha a Hospedaria de Imigrantes de Pinheiros, no Espírito Santo.[9]

Delimitando a noção de hospedaria e localizando outras pelo país, é oportuno destacar que o termo também se refere aos centros para reclusão de enfermos. No caso da do Espírito Santo, há alusão, no ano de 1892, de imigrantes confinados no lazareto – uma construção para quarentena de indivíduos vítimas de doenças infecciosas – da Ilha Grande. Sendo essa, no final do século 19 a única estação quarentenária no Brasil. Por isso, os navios que vinham de portos suspeitos ou infectados e que se dirigiam ao Norte tinham, primeiro, de ancorar naquela ilha. Esse mesmo local, cerca de trinta e cinco anos depois, durante a ditadura estadonovista [1937-45], tornou-se um presídio político.[10]

A ausência de outras estações de quarentena tematizou uma persistente reclamação das empresas marítimas, obrigando ao Estado a prometer construir o lazareto de Tamandaré, em Pernambuco. Em janeiro de 1895, entretanto, as obras em Pernambuco continuavam inacabadas, e as estações no Pará e na Bahia permaneciam nas promessas.[11]

Diversos indícios, portanto, mapeiam as intenções e, por vezes, concretizações, de se instalar lazaretos no território nacional. Tais projetos arquitetônicos, como o exemplo da edificação da Hospedaria da Ilha das Flores são espaços de isolamento para doenças do corpo e para os motes políticos. A Hospedaria da Ilha das Flores foi, da sua inauguração até pelo menos o início da 2ª Guerra, voltada às demandas das enfermidades dos imigrantes. Outras atividades, porém, igualmente ocuparam sua extensão neste período. Assim, durante parte da 1ª Guerra – de novembro de 1917 a outubro de 1919 –, a Ilha das Flores foi cedida à Marinha, que lá instalou um centro de reclusão tendo como “hóspedes” imigrantes alemães[12]. Prática repetida durante a 2ª Guerra, quando essa experiência de reclusão com caráter político foi novamente instituída. Os estudos atuais, contudo, parecem desconhecer a informação e se concentraram no período do segundo conflito mundial.

Os presos políticos foram asilados na Ilha entre 1922 e 1942, como mencionado anteriormente, em “campos de concentração” para “estrangeiros perigosos”. A partir de maio de 1969, com a captura de militantes da Dissidência da Guanabara – grupo que originaria o MR-8[13] – e num instante anterior ao sequestro do embaixador americano, a Ilha das Flores passou a ser um dos destinos dos presos políticos das organizações das esquerdas armadas. Não se pode afirmar, contudo, se a Hospedaria, os “centros de trabalho forçado”, no caso dos alemães, e as prisões políticas coexistiram. Tudo indica que sim.

A Hospedaria, em seu primeiro ano de funcionamento, recebeu, alojou e encaminhou aos seus destinos, 7.462 imigrantes, sendo 5.208 homens e 2.254 mulheres. Por nacionalidade, tem-se: 4.690 italianos, 1.083 portugueses, 901 austríacos, 640 alemães, 100 espanhóis, 26 franceses, 9 ingleses e, mais 13 de nacionalidades diversas. Em contraposição, nos últimos anos de funcionamento da Hospedaria de Imigrantes, o movimento imigratório baixou consideravelmente. Assim, no período de 1953 a 1965:

 

ANO HOSPEDAGEM ANO HOSPEDAGEM ANO HOSPEDAGEM
1953 1,742 1954 968 1955 854
1956 374 1957 1.513 1958 1.186
1959 1.401 1960 737 1961 391
1962 291 1963 172 1964 347
1965 86

 

É oportuno observar as outras ilhas da baía de Guanabara que desempenharam funções semelhantes de confinamento. Parto da perspectiva, portanto, de que as ilhas são também apropriadas, segundo Marshall Sahlins, como locais de “higiene” de ideias e de doenças, como espaços do isolamento e da quarentena, assim como são revestidas da imagem de

 

“[…] lugares especiais, remotos e misteriosos, imensamente atrativos, mas também assustadores. […] As ilhas ‘diabolicamente encantadoras’” são o cenário de náufragos, de presídios, da expatriação de enfermos – do corpo e das “questões da alma” –, e também dos relatos do Capitão Cook e de Fernão de Magalhães. Exemplos dos espaços da natureza selvagem que abrigam o singular – tanto em indivíduos, como em paisagem –, os locais destinados às bênçãos ou às maldições e que sentiu a ação do homem quando o “[…] senso do romântico, do misterioso ficou subordinado à paixão da curiosidade científica”. [14]

 

No plano mítico e metafórico, é interessante perceber as idealizações que as ilhas ocuparam e ainda o fazem. Na concepção de um sonho, de uma utopia do idílico, são ainda pontuadas pela expressão do exílio.

 

O perigo que vem do mar

 

Partindo da noção de que as ilhas formam um conjunto de sítios destinados também à limpeza, no caso do Brasil essa percepção esteve presente no aumento do afluxo de imigrantes aos seus portos, no final do século 19. Paralelo às estratégias de substituição da mão-de-obra escrava por imigrantes assalariados nas fazendas de café, o Império do Brasil também se preocupou em regularizar a posse e aquisição das terras e, assim, em 18/9/1850, institui a Repartição Geral de Terras Públicas, pela Lei nº 601, a “Lei de Terras”. Mais de um quarto de século se passaria até que a Inspetoria Geral de Terras e Colonização, vinculada ao Ministério de Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, e destinada a promover a imigração espontânea, fosse instaurada pelo Decreto nº 6.129, de 23/2/1876. O receio às questões sanitárias frente ao fluxo de homens, mulheres e crianças que desembarcavam, diariamente, nos portos do país sentencia a necessidade de se constituir uma Inspetoria e regulamentar suas atividades.

Um marco importante de como ocupar as ilhas e proteger o território está descrito no Código Sanitário de 1894, que legislou durante toda a primeira República. Nele se inscreve um preceito de higiene que é milenar, mas o importante é perceber sua apropriação nesse instante. Assim, esse Código determinou que “os hospitais deveriam se localizar sempre afastados dos centros urbanos, em terrenos secos, saneados e cercados por vegetação exuberante”.[15] Vale destacar, contudo, que de modo algum se está afirmando que não existiam centros de tratamento e hospitais dentro do espaço da cidade.[16]

No artífice de atrair mão-de-obra estrangeira e ao mesmo tempo não permitir o alastramento de epidemias na população, é interessante o relato de um médico norte-americano, funcionário do Serviço de Hospital da Marinha, que era o encarregado da escolha de quem entraria ou não no país como imigrante. Victor Heiser descreveu, nas suas memórias, os últimos anos do século 19 e lembrou que

 

“[…] durante muitos anos a inundação de operários baratos vindos de fora derramara no país, pelos portões escancarados de Boston, Nova York, Filadélfia, São Francisco e outros portos de grandes cidades, uma aluvião de aleijados, coxos e cegos, até 1882. Passaram-se mais nove anos antes que o sentimento público, insurgindo-se lentamente contra a invasão do trabalho estrangeiro, forçasse o Congresso a agir. Naquela época, não somente chineses foram excluídos, mas o Serviço de Hospital da Marinha foi encarregado de indicar, para que fossem rejeitados, os imigrantes portadores de moléstias repugnantes ou contagiosas ou os que poderiam vir a ser, por alguma tara física, encargos públicos” [17]

 

Nesta passagem o Dr. Heiser se refere, en passant, a todo um clamor sindical que estabeleceu o sistema de cotas, por nacionalidade, para a entrada de estrangeiros nos EUA, a partir de 1924. Essas medidas, repetidas pela Argentina um pouco mais tarde, tornam o Brasil, no início do século 20, um porto desejável de acesso. Esses “portos abertos”, porém, foram redimensionados nos primeiros meses do governo Getulio Vargas. Em 12/12/1930, o Decreto nº 19.482 limitou a entrada de passageiros estrangeiros de terceira classe a partir do instrumento das “cartas de chamada” – que obrigavam o imigrante a garantir já ter emprego no país. A existência desse instrumento justificou também a constituição de regras de amparo ao trabalhador nacional, estabelecendo como o imigrante preferencial o que se dirigisse ao meio rural.[18]

Mapeando os nortes que direcionam as políticas de Saúde Pública na Primeira República, constata-se que o modelo político liberal, do período, não oferecia assistência individual à saúde, que só passou a vigorar na década de 1930. As ações de Saúde Pública nas primeiras três décadas do século 20, centraram-se no saneamento urbano e na regulamentação das habitações populares[19]. O alto custo de uma assistência médica privada também explica a sobrecarga nas ações filantrópicas das Santas Casas de Misericórdia e das Ligas de Higiene, fazendo proliferar uma prática recorrente: o curandeirismo entre os pobres enfermos, tanto nas áreas urbanas como rurais.[20]

É o decreto nº 9.081, de 1911, que pela primeira vez faz referência à Ilha das Flores como o local de hospedagem de imigrantes desembarcados no Rio de Janeiro. O capítulo 23 desse dispositivo legal determinava o tempo de estada na Ilha, que “só poderá exceder de oito dias [de permanência] em casos extraordinários ou de força maior, a juízo da diretoria do Serviço de Povoamento”. Dentro desse panorama de regulamentações, uma dimensão importante do problema foi discutida nas convenções sanitária internacionais. A de novembro de 1887, por exemplo, definiu a criação, nos portos do Brasil e nas principais estações ferroviárias, de serviços de desinfecção para “barrar os agentes patogênicos veiculados por mercadorias e pessoas”.

Em janeiro de 1886, a Junta Central de Higiene Pública foi dividida em duas repartições: Inspetoria Geral de Saúde dos Portos e Inspetoria Geral de Higiene, ambas vinculadas ao Ministério do Império. A primeira era, por assim dizer, a das Relações Exteriores. Tinha a seu cargo a polícia sanitária do litoral, dos ancoradouros e navios, a superintendência dos lazaretos e do Hospital Marítimo de Santa Isabel, em Niterói. Quando recebia notícia de epidemia em país vinculado comercialmente ao Brasil, propunha ao ministro as medidas para barrar o ingresso da doença aqui e impunha quarentena aos navios procedentes das zonas infectadas. As funções do Inspetor-Geral de Higiene, segundo Benchimol [1999], eram portas adentro, estendendo-se, formalmente, a todo o território nacional.

A partir da adoção dessas instruções sanitaristas e na esteira do inventário de truques do médico americano para impedir um “não bom trabalhador” de ingressar no território nacional, vislumbra-se a gênese de teorias segregacionistas. Algumas dessas preocupações são compartilhadas pelas autoridades brasileiras e os itens idade, moralidade e profissão concentravam a atenção do Estado. As condições de saúde física e/ou psíquica, entretanto, não eram declaradamente empecilhos. Neste contexto, as normas de conduta determinavam que um navio cuja tripulação e/ou passageiros estivessem com alguma enfermidade contagiosa a bordo, deveria advertir as autoridades de saúde do porto, com oito dias de antecedência à sua chegada e, assim, era impedido de aportar e era desviado para as Hospedarias e seus centros médicos. Os irremediavelmente incuráveis, na noção estatal da época – inválidos, dementes e vagabundos –, contudo, não eram bem-vindos e deveriam, de algum modo, ser “descartado”, sendo impedidos, pelo uso da Lei, de alcançarem o continente.

Neste sentido, os trajetos dos imigrantes enfermos que se curavam e tiveram vistos de entrada, são razoavelmente conhecidos, quando se deslocaram para outros estados das regiões sudeste e sul. Pouco ainda se sabe, contudo, do “lugar do imigrante” na Capital Federal.[21]

 

[1] Esse artigo é uma adaptação de um paper sobre um projeto desenvolvido entre 2003-05, como pós-doutoramento júnior, financiado pelo CNPq, junto ao Cemi [Centro de Estudos de Migrações Internacionais] da Unicamp e sobre orientação do professor Michael Hall. Partes dessas reflexões estão publicadas, como artigos, em dois livros: “A ante-sala do paraíso: quarentena, isolamento e prisão na Ilha das Flores”. In Keila Grinberg (org.). História dos Judeus no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005. pp. 399-421; e “Cercear para conter! A Ilha das Flores: uma experiência de quarentena, isolamento e prisão”. In Izabel Andrade Marson e Márcia Capelari Naxara (orgs.). Sobre a Humilhação: sentimentos, gestos e palavras. Uberlândia, EDUFU, 2005. pp. 265-84.

[2] Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas [Unicamp] e Diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Autora, entre outros, de Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua [Rio de Janeiro, Editora Imago, 1996] e Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 [São Paulo, Editora Boitempo, 2004]. E organizadora de Perfis cruzados: trajetórias e militância política no Brasil [Rio de Janeiro, Editora Imago, 2002].

[3]A Hospedaria de Ellis Island, em Nova York, foi construída a partir de 1860. De 1892 a 1952, 12 milhões de estrangeiros, com passagem de 3ª classe, passaram pelo exame médico e adentraram o país como imigrantes [www.nps.gov/Elis]

[4] Na Argentina, o primeiro albergue instalou-se na avenida Corrientes, nº 8-10, com capacidade para 300 pessoas, e atendeu 20% da imigração entre 1857 e 1874, tratando os enfermos de febre amarela, em 1871, e cólera em 1873. A partir de 1880 se construiu outros alojamentos para imigrantes, como, em 1888 a Rotonda de Retiro, que recebeu até 5 mil estrangeiros num só dia, e durante 1908 acolheu um total de 129.304 imigrantes. Em 1911, outra Hospedaria foi erguida nos arredores do Rio de la Plata, com capacidade de receber 15 mil pessoas e que funcionou até 1953. Entre 1910 e 1913 as estatísticas oficiais argentinas registram a chegada de 1.100.000 imigrantes. Também se instalaram em outros países, Hospedarias de Imigrantes, como, por exemplo, no Chile, a Hospedaria de Vergara, na cidade de Valparaíso, a Hospedaria de Talca, e outras [http://www.ub.es/geocrit/b3w-739.htm].

[5] “Foco de Infecção”, Jornal Correio Mercantil, 2/3/1889, p. 2.

[6] “Capitulo VII: Da Hospedaria dos imigrantes e dos escritórios de locação de serviços. Art. 23. Na hospedaria de imigrantes haverá um Administrador nomeado pelo Inspetor Geral, incumbido de providenciar acerca do tratamento dos imigrantes e guarda das bagagens; e bem assim de manter a ordem e a policia do estabelecimento.  § 1º Subordinado ao Inspetor, dar-lhe-á parte diária do que ocorrer na hospedaria, solicitando as providências indispensáveis ao bem-estar dos imigrantes e fazendo observar as instruções expedidas para a regularidade do serviço. § 2º Terá sob sua imediata direção os Guardas que o Inspetor designar para o coadjuvarem no desempenho de seus deveres.  Art. 24. O escritório de locação de serviços ficará a cargo de um Agente nomeado pelo Inspetor, com os auxiliares por estes designados”.

[7]  Zaidman, Diana. “A Imigração ao Brasil no Império: o caso particular da hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores”. Niterói, Dissertação de Mestrado em História, UFF, 1983.

[8] Trabalhos recentes como as coletâneas Histórias de imigrantes e de imigração no Rio de Janeiro, organizada por Angela de Castro Gomes [Rio de Janeiro, Sette Letras, 2000] e a de Carlos Lessa, Os lusíadas na aventura do Rio de Janeiro [Rio de Janeiro, Record, 2002], apontam essa carência e investem em saneá-la.

[9] Os acervos documentais do Ministério do Império e do Departamento Nacional de Povoamento estão em depósito no Arquivo Nacional, e finda seus registros em 1932.

[10] Relatos do cárcere vivido na Ilha Grande, durante a ditadura estadonovista, são encontrados nos livros de: Graciliano Ramos, em Memórias do cárcere, e Jorge Amado, em Os Subterrâneos da Liberdade; como também as lembranças de Noé Gertel a respeito de Joaquim Câmara Ferreira, o Velho ou Toledo, quando juntos estiveram [in Kushnir, Beatriz (org.). Perfis Cruzados: trajetórias e militância política no Brasil. Rio de Janeiro, Imago, 2002]. Esses fazem um paralelo entre o ocorrido naquela ilha e na das Flores, possibilitando que esses sejam fontes de análise das experiências de prisão política em Ilhas no período.

[11] O Decreto no 9554, de 3/2/1886, regulamentou as Inspetorias Gerais de Higiene conforme o disposto no Decreto no 3271, de 28/9/1885. Cf. revista Brasil Médico, Rio de Janeiro, 15/1/1895, p. 824 [Agradeço a Jaime L. Benchimol que me chamou a atenção para esse dado].

[12] Pelo Decreto no 12.689, de 21/10/1917, a Ilha das Flores foi transferida, provisoriamente, ao Ministério da Marinha. E pelo Decreto no 13.781, de 1/10/1919, retorna ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.

[13] Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) originou-se da Dissidência da Guanabara (DI da Guanabara) do PCB, tendo uma grande influência no Movimento Estudantil. Destacou-se nacional e internacionalmente ao idealizar, em conjunto com a ALN, o primeiro seqüestro de caráter político que teve êxito: o do embaixador norte-americano no Brasil. Em 1972, o MR-8 foi desarticulado no país.

[14] Sahlins, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990. pp. 19-21.

[15] Telarolli Junior, Rodolpho. “Imigração e epidemias no estado de São Paulo”. Revista Manguinhos, vol. III, nº 2, jul./out. 1995. p. 274; Machado, Roberto et alli. A danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1978.

[16] Para ilustrar a afirmativa é interessante a fonte produzida pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro em 1922. A partir do mapeamento das instituições de assistência pública e privada, desenhou-se toda a rede hospitalar e assistencialista [Assistência Pública e Privada no Rio de Janeiro (Brasil), História e Estatística. Comemoração do Centenário da Independência Nacional. Rio de Janeiro, Tipografia do “Anuário do Brasil”, 1922].

[17] Heiser, Victor. A odisséia de um médico americano. (2ª ed.). Porto Alegre, Ed. Globo, 1940. pp. 18-19.

[18] Quanto a essa questão, são extremamente elucidativas além de plasticamente belíssimas, as fotos que Jorge Latour – adido comercial do Brasil em Varsóvia, Polônia – sacou de transeuntes de origem judaica nas ruas da cidade. A intenção era provar que esses seriam imigrantes urbanos e não rurais, por isso deveriam ser proibidos de entrar. Essa problemática se situa dentro das questões do pré-Segunda Guerra e as tendências nazi-fascistas do Estado Novo [8/11/1936, maço 9650 (622), Arquivo Histórico do Itamaraty/Rio de Janeiro].

[19] Benchimol, Jaime Larry. Pereira Passos, um Hausmann tropical. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes/Departamento Geral de Documentação e Informação, 1990; Rocha, Oswaldo Porto. A era das demolições, cidade do Rio de Janeiro: 1870-1920. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes/Departamento Geral de Documentação e Informação, 1986.

[20] Algumas leituras percebem um deslocamento da atuação de Saúde Pública, em São Paulo, para o espaço rural, com o Código Sanitário, de 1918 [Telarolli Junior, 1995]. Na visão de Benchimol [1999], contudo, esse Código não sinaliza precisamente uma reorientação para as doenças endêmicas no campo. Para esse autor, Oswaldo Cruz ao combater doenças transmitidas por insetos – febre amarela, peste – ou passíveis de serem combatidas por vacina (varíola) ou soro (peste), desprendeu as questões de Saúde Pública da retórica anterior, centrada na higiene, à qual permanecem aderidos os engenheiros e todos os atores sociais interessados em derrubar “cascos urbanos” antigos e habitações coletivas.  A prática do isolamento dos doentes durante as epidemias de febre amarela e varíola, por exemplo, após o advento da teoria microbiana e consequentemente o fortalecimento da ideia de que as doenças eram contagiosas, reforçou os procedimentos de quarentena e desinfecção como rotinas da Saúde Pública. Mesmo quando não se conhecia com certeza qual o micróbio da doença e como ela de fato se transmitia, como era o caso da febre amarela na virada do século 19 para o 20, o importante, para Oswaldo Cruz, era isolar o doente do mosquito. As desinfecções deixaram de ser feitas nesses casos, como também na malária, pois Cruz e Ribas eram intransigentes nas suas recusas a essas práticas. Essas medidas colidiam “não tanto contra os miasmáticos, que queriam derrubar tudo, mas principalmente contra os magnetizados pela correlação micróbios-contágio”.

[21] São oportunos o levantamento e a discussão bibliográfica feitos por Rodolpho Telarolli Junior, “Imigração e epidemias no estado de São Paulo”, op. cit., pp. 265-281.

 

A Ilha das Flores – um pouco de sua história até a criação da hospedaria

Andrea C. T. Wanderley

A Ilha das Flores pertencia, no início do XIX a Delfina Felicidade do Nascimento Flores e era chamada de Ilha de Santo Antônio. Segundo o Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores, é “provável que seu nome atual tenha referência a essa proprietária, pois o local devia ser conhecido como a “ilha da D. Flores”, passando depois à “Ilha das Flores”.

​Foi incorporada ao patrimônio da província do Rio de Janeiro, rovavelmente em quitação a dívidas de sua proprietária, e, em 17 de agosto de 1834, foi comprada por Maria do Leo Antunes. Anos depois, foi colocada à venda,  (Correio Mercantil, 21 de dezembro de 1956, penúltima coluna) e, em 1857, foi vendida para o senador José Inácio Silveira Motta (1811 – 1893), que mudou-se para lá, com sua família, em 1861 (Correio Mercantil, 12 de fevereiro de 1861, quinta coluna) e fundou no local um estabelecimento de piscicultura e também desenvolveu o cultivo de mandioca. Eram abundantes na ilha ostras e argilas.

A edificação da Hospedaria no Rio, uma  iniciativa de dom Pedro II, foi instituida em 1883, quando o governo imperial, através da Inspetoria Geral de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura, adquiriu de Silveira Motta, por 170 contos de réis, a Ilha das Flores. As negociações haviam começado em 1878 – o senador havia, por conselhos médicos, decidido ir viver em São Paulo. Quando foi adquirida pelo Império, havia na Ilha das Flores “uma boa casa de vivenda“, construída em 1868, grandes armazésn, “casinhas para escravos e trabalhadores livres”, um edifício que servia como disensa e depósito, dois torreões de recreio e seis docas que serviam como viveiros de peixes (Correio Paulistano, 6 de dezembro de 1878, última colunaCorreio Paulistano, 17 de setembro de 1881, segunda coluna;Gazeta de Notícias, 13 de janeiro de 1883, penúltima coluna; e 17 de janeiro de 1883, terceira colunaCorreio Paulistano, 14 de janeiro de 1883, terceira colunaJornal do Commercio, 20 de janeiro de 1883, quinta colunaCorreio Paulistano, 8 de março de 1883, primeira coluna).

 

 

Os primeiros imigrantes chegaram à Hospedaria da Ilha das Flores, em 1º de maio de 1883 (Gazeta de Notícias, 6 de maio de 1883, segunda coluna). Sua localização geográfica era considerada favorável porque seu isolamento tornaria dispensável a passagem dos imigrantes pela cidade do Rio de Janeiro, um foco de epidemias; e também por ser perto da Corte e de Niterói, uma vantagem para o deslocamento dos imigrantes para seus destinos finais.

 

 

Andrea C. T. Wanderley

Editora e pesquisadora do portal Brasiliana Fotográfica

 

Fontes:

 

FERREIRA, Raquel França dos Santos. Hospedaria de Imigrantes Ilha das Flores. Biblioteca Nacional, 10 de maio de 2020.

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Site Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores

Site Ministério da Defesa – Marinha do Brasil

Site MultiRio

A história da fotografia aérea e a Escola de Aviação Militar

A partir de uma vista área da antiga Escola de Aviação Militar com algumas instalações do Parque Central de Aviação, realizada em 18 de março de 1937, que faz parte de um conjunto de vinte álbuns produzidos entre os anos de 1928 e 1951, totalizando cerca de 3592 imagens, os historiadores Fabiana Costa Dias e Jefferson Eduardo dos Santos Machado escreveram o artigo “A Escola de Aviação Militar”.  Eles contam um pouco da história da produção e da utilização da fotografia aérea pelos militares. O setor responsável pela atividade de fotografar era a Seção Foto e estava vinculada às escolas de aviação que formavam pilotos e observadores aéreos, além de funcionar como uma “escola técnica de aviação” que formava também militares especializados em fotografia e em toda a técnica envolvida.

 

A Escola de Aviação Militar

Fabiana Costa Dias e Jefferson Eduardo dos Santos Machado*

 

 

A imagem selecionada é uma vista área da antiga Escola de Aviação Militar com algumas instalações do Parque Central de Aviação (PCAv), possui a identificação de número 90, classificação de foto oblíqua, foi fotografada pela Escola de Aviação Militar, às 10 horas, do dia 18 de março de 1937, o foco da câmera marcava 24 e a aeronave encontrava-se a 200 metros do solo no momento da foto. Como sabemos de tudo isso? Se observarmos, essas informações estão localizadas na parte inferior da fotografia. Outra pertinente pergunta seria como descobrimos o significado dessa legenda? Para isso tivemos que pesquisar nas antigas publicações utilizadas nas Escolas de Aviação. Dizemos Escolas de Aviação no plural porque realmente tivemos seis escolas situadas na mesma área registrada na fotografia que estamos apresentando hoje, foram elas: Aeroclube Brasileiro (1911 – 1914), Escola Brasileira de Aviação (1914), Escola de Aviação Militar (1919 – 1938), Escola de Aeronáutica Militar (1938 – 1940), Escola de Aeronáutica do Exército (1940 – 1941) e Escola de Aeronáutica (1941-1973).

As publicações eram oferecidas aos alunos das escolas de aviação na disciplina Fotografia Aérea, segundo a publicação Noções de Fotografia Aérea (1939). O início da utilização da fotografia aérea pelos militares ocorreu em 1858, a bordo de um balão. A dirigibilidade de balões era instável e os aviões permitiram sua estabilidade e avanço. Acompanhado do aperfeiçoamento das primeiras aeronaves, também foram desenvolvidas câmeras especiais para o registro aéreo. Elas surgiram a partir de 1915 e até aquele momento as usadas eram as mesmas utilizadas pela imprensa. A fotografia minimizava um possível erro de impressão sobre o que era fotografado, disponibilizando uma informação fiel e uma ideia atualizada do campo de operações. Dessa maneira, ela servia para tirar possíveis dúvidas das cartas aeronáuticas, cobrir suas deficiências e oferecer conhecimento tanto para a defesa quanto para o ataque.

A fotografia aqui apresentada faz parte de um conjunto de vinte álbuns produzidos entre os anos de 1928 e 1951 pelas escolas de aviação citadas acima, totalizando cerca de 3592 imagens. O setor responsável pela atividade de fotografar era a Seção Foto e estava vinculada às escolas de aviação que formavam pilotos e observadores aéreos, além de funcionar como uma “escola técnica de aviação” que formava também militares especializados em fotografia e em toda a técnica envolvida. De acordo com a publicação Noções de Fotografia Aérea (1939), a “Seção Foto é o órgão incumbido de guardar e conservar o material fotográfico, de sua preparação para o voo, da realização dos trabalhos de laboratório, da identificação, inscrição e arquivo, e, muitas vezes execução das missões”. (1)

A atividade de inscrição compreende a elaboração da legenda, por meio dela, sabemos a identificação de todas as imagens desse conjunto. A legenda é composta pelos seguintes campos: número e classificação da fotografia, unidade a que pertence a Seção Foto, foco do aparelho, região fotografada, altura do voo, hora, data e flecha indicando o Norte”.(2)  As variações da classificação era a informação sobre o tipo de suporte utilizado no momento da foto, negativo rígido, de vidro, ou flexível, de nitrato. As classificações poderiam ser as seguintes: PV, para placa de vidro vertical; PO, para placa de vidro obliqua; FV, para filme vertical e; FO, para filme obliquo. As fotos verticais eram as em que o eixo ótico forma um ângulo de aproximadamente 90° com o terreno e as oblíquas, o eixo está inclinado em relação ao terreno e a linha do horizonte não aparece na fotografia. Além disso o registro fotográfico poderia ser aéreos, terrestres, de acidentes, de reprodução e identificação pessoal. O formato ou era 13 x 18 ou 18 x 24. Todos esses tipos de registros encontram-se nesse conjunto de vinte álbuns, sendo quatorze de imagens aéreas, cinco de acidentes com aeronaves e um de imagens terrestres.

A Missão Militar Francesa de Aviação (MMFAv) foi a responsável pela montagem da primeira Seção Foto da Aviação Militar com seus equipamentos e material necessário para a realização das fotografias, assim como, a revelação e tudo que envolvia a técnica da fotografia militar. A MMFAv fazia parte da Missão Militar Francesa que durou até 1940, quando a França foi ocupada pela Alemanha e os oficiais franceses tiveram que renunciar à missão e partir para a guerra. O objetivo da Missão Militar Francesa era auxiliar na instrução e modernização do Exército. A Escola de Aviação Militar do Exército foi gerida, em sua parte técnica pela Missão Militar Francesa de Aviação (MMFAv) que funcionou de forma efetiva até 1931.

Após essa breve e rápida apresentação de como as imagens eram realizadas pelas escolas de aviação, gostaríamos de contextualizá-la historicamente no Campo dos Afonsos. Usaremos como recorte temporal o uso do terreno para a atividade de aviação, 1911, até a data da realização da fotografia exposta, 1937. A imagem registra parte do que é hoje conhecido como Guarnição dos Afonsos (3), situada no bairro de Sulacap, região oeste do Estado do Rio de Janeiro.

O que está ocupado por tantas organizações militares, um dia pertenceu ao Engenho de Afonsos e posteriormente foi cedido à Polícia do Distrito Federal (1912) pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Este Ministério comprou uma parte do terreno e cedeu ao primeiro aeroclube do Brasil, o Aeroclube Brasileiro, fundado em 14 de outubro de 1911. Nesse mesmo terreno, anos depois, também funcionou a Escola Brasileira de Aviação. Por dificuldades financeiras, no mesmo ano que esta escola foi inaugurada, 1914, ela também fechou as portas. Com a criação da Escola de Aviação Militar do Exército (1918), o Aeroclube Brasileiro mudou de endereço e instalou-se em Manguinhos, onde agora está localizada a Vila do João e parte da Avenida Brasil.

Nos anos da década de 1920 o Campo dos Afonsos foi conhecendo um crescimento progressivo. A quantidade de aviadores oficiais e praças cresceram. Criam-se a Esquadrilha de Aperfeiçoamento e depois o 1° Regimento de Aviação, para onde foram alocados os pilotos já formados para utilizarem as aeronaves após a formação.

Em 1927 foi criada a Arma da Aviação no Exército Brasileiro. Com o crescimento do número de aeronaves e o surgimento de novos Regimentos de Aviação por todo o país, houve a necessidade de se criar uma Unidade para realizar a manutenção do Material Aeronáutico. Em 1933, foi inaugurado o Parque Central de Aviação (PCAv), já depois da saída da Missão Francesa de Aviação.

(1) MINISTÉRIO DA GUERRA, 1939, p.43.

(2) Ibid., p.46.

(3) Trata-se de um complexo de organizações militares que estão sediadas na área do chamado Campo dos Afonsos.

 

* Fabiana Costa Dias é doutoranda pelo PPGCI/UFF e Jefferson Machado é Doutor em História Comparada pelo PPGCH/UFRJ

 

Fontes:

DIAS, F. C. Museu Aeroespacial: um museu de heróis. In: XVIII Simpósio Nacional de História, 2015, Florianópolis. Lugares dos historiadores: velhos e novos desafios. 2015. v.1. (link:

DIAS, F. C.; MACHADO, J. E. S. As transformações arquitetônicas no Campo dos Afonsos no período de 1930-1940: a fotogrametria como fonte para a história e arquitetura. In: 5º Seminário Ibero-americano Arquitetura e Documentação, 2017, Belo Horizonte.

MINISTÉRIO DA GUERRA. Noções de Fotografia Aérea (compilação de dados colhidos em diversas obras). Rio de Janeiro: Imprensa Técnica do S.T.Ae, 1939.

______. Noções de Fotografia Aérea. Rio de Janeiro: Imprensa Técnica do S.T.Ae, 1939.

UNIVERSIDADE DA FORÇA AÉREA. Campo dos Afonsos: 100 anos de história da aviação brasileira. Rio de Janeiro: Universidade da Força Aérea, 2012.